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Sempre por bom caminho e segue.
Francisco Grandella
A Europa do século XIX ficou marcada pelo surto epidémico da tuberculose como principal causa das mortes devido aos poucos cuidados profilácticos por parte das populações e aos ainda rudimentares avanços da ciência médica, preocupada em combater e travar a doença. Só em Portugal, em 1899, o total de mortes por tuberculose era estimado entre 15 a 20.000, equivalente a uma taxa de 297 a 396 por 100.000 habitantes. Apesar de todos os esforços despendidos a Medicina, entre os finais do século XIX até à década de 40 do seguinte, não possuía quaisquer recursos farmacológicos para combater a tuberculose, e em Portugal voltou-se para o reforço das únicas medidas realmente eficazes: isolamento e prevenção, não só através da criação de centros hospitalares e sanatoriais, como também pela implementação de regras e estratégias sociais conducentes a melhorar as condições de vida, alimentação e higiene física e psicomental das populações (1).
Não obstante o velho conhecimento, mais que assente, entre os praticantes da medicina hipocrático-galénica, e provavelmente entre os antigos egípcios que também sofreram essa “praga faraónica”, de que o clima de altitude é favorável à cura da tuberculose, só em 1854 Francisco António Barral publicaria o primeiro trabalho científico português sobre O clima do Funchal e a sua influência no tratamento da tuberculose, seguido de Brehmer que em 1856 divulgaria os seus estudos de carácter científico sobre os benefícios do arejamento, do repouso em estabelecimentos fechados e da sobrealimentação no tratamento da tuberculose. Assim, a partir do último quartel de Oitocentos os sanatórios vieram a assumir um importante papel na luta antituberculose, e um pouco por todo o país foram sendo construídos e postos a funcionar (2).
Essa iniciativa senatorial partiu da própria rainha D. Amélia, de nome completo Maria Amélia Luísa Helena de Orleães (1865-1951), esposa do rei D. Carlos I, que há muito alimentava a ideia de fundar a Assistência Nacional aos Tuberculosos, mas a aparente indiferença dos responsáveis pela política de Saúde Nacional impediam-na de realizar o seu desejo. Por fim, o professor Moreira Júnior, reconhecido parlamentarista, conseguiu fazer-se ouvir no Parlamento em 1899, ousando “chamar a atenção do governo” para a “situação cruciante” desencadeada pela doença e para a urgente necessidade de se tomarem as adequadas medidas preventivas. Segundo João Frada (in Portal de Saúde Pública, 2009), essa chamada de atenção no Parlamento foi o empurrão decisivo para o arranque da Assistência Nacional aos Tuberculosos (A.N.T.), a qual reflectiria a vontade e as ideias, o projecto, em suma, da magnânima rainha D. Amélia.
A monarca apresentou então, em 11 de Junho de 1899, na Sala das Sessões do Conselho de Estado do Ministério do Reino por si presidida, um conjunto de intenções resumidas em quatro pontos:
1.º – Construir hospitais marítimos.
2.º – Fundar sanatórios em clima de montanha e de altitude.
3.º – Estabelecer em todas as capitais de distrito institutos que serviriam, não só para o estudo e tratamento da tísica, mas também de socorro aos doentes (mais aligeirados, que ainda não careciam de isolamento e) que têm de trabalhar para sustentar as suas famílias.
4.º – Criar os hospitais para tísicos, destinados aos incuráveis.
Nessa sessão foram estabelecidas diversas estratégias consideradas fundamentais para se poderem atingir os elevados objectivos, quer imediatos, quer a médio prazo, da A.N.T., que viriam a concretizar-se através de várias iniciativas (3):
– Criação de um subsídio anual de 20.000$00 assumido pelo Governo.
– Subsídios, obrigatoriamente suportados pelas Câmaras Municipais, incluídos nos respectivos orçamentos.
– Utilização dos fundos correspondentes a “1% das quotas dos sócios das sociedades ou associações de recreio onde se realizassem jogos” e do “produto das multas que por leis ou regulamentos fossem destinadas a esse fim”.
– Isenção de direitos alfandegários sobre os materiais fabricados no estrangeiro, destinados ao serviço de dispensários, sanatórios e hospitais.
– Angariação de fundos resultantes de quermesses, peditórios e subscrições efectuados junto de emigrantes portugueses no estrangeiro, de leitores de vários jornais publicados em Portugal, de instituições bancárias, bem como de doações e quantias obtidas através da cooperação de regedores, de párocos e de paroquianos.
– Recolha de dádivas e de receitas provenientes da realização de festas e espectáculos.
A proposta da rainha D. Amélia foi aprovada e no mês seguinte o Parlamento reconheceu a existência legal da Assistência Nacional aos Tuberculosos sob a designação Instituto da Rainha D. Amélia, com a publicação da Lei de 17 de Agosto de 1899. Esse movimento de beneficência e socorro social exigia uma grande responsabilidade e um enorme sentido de gestão, face à complexidade de acções a desenvolver e a controlar em todo o País, e naturalmente implicou a formação de uma “Comissão de Propaganda”, bem como de subcomissões com a missão de levarem a efeito as múltiplas estratégias definidas a nível da Comissão Central. Foram então nomeadas as referidas subcomissões:
– Dos Zeladores, destinada a zelar pelos interesses da Sociedade em todos os campos de acção, presidida pelo Cardeal-Patriarca de Lisboa.
– Das Festas, com a missão de promover e realizar festas remuneradas, cujas receitas seriam destinadas à Sociedade, sob a presidência do Conde de Sabugosa.
– Das Quetes, responsável pela realização de campanhas de esmolas e donativos para a Sociedade, sob a presidência do Arcebispo de Mitilene.
– De Estudo e Estatística, com o objectivo de recolha de dados, informações e análise da tuberculose no País e o seu desenvolvimento, em termos de morbilidade e mortalidade, sob a direcção do Dr. Manuel António Moreira.
– De Profilaxia, necessariamente voltada para o estudo e implementação das necessárias medidas higiénicas e sanitárias destinadas ao combate da tuberculose, presidida pelo Dr. Ricardo Jorge.
– De Divulgação, concentrando todo o trabalho de publicidade e alerta social contra a doença, bem como a difusão dos respectivos intuitos e programas sanitários da A.N.T. nessa luta, sob a orientação e direcção do Dr. Curry Cabral.
Com sede no então designado Instituto da Rainha D. Amélia, na Avenida 24 de Julho em Lisboa, num edifício vizinho do Mercado da Ribeira, só em 1906 ele tomaria o nome definitivo de Assistência Nacional aos Tuberculosos. À sua Comissão Central, como membro fundador e mecenas próximo, com amizade quase ou mesmo íntima, da família real, pertenceu o Dr. António Augusto Carvalho Monteiro, o célebre feitor em 1900-1910 da Quinta da Regaleira de Sintra (4), presente em quase todas as reuniões da A.N.T. presididas pela rainha D. Amélia.
Até 1912 a Assistência Nacional aos Tuberculosos, instituição de iniciativa privada actuando no continente, ilhas adjacentes e colónias, inaugurou os seguintes sanatórios mandados edificar por D. Amélia:
Sanatório Marítimo de Outão, inaugurado em 1900.
Sanatório de Carcavelos, inaugurado em 1902.
Sanatório de Sousa Martins (Guarda), inaugurado em 1907.
Sanatório de Portalegre, inaugurado em 1909.
Sanatório do Lumiar (Lisboa), inaugurado em 1912.
Quem mandou edificar esse último sanatório no Lumiar (então zona rural arejada) foi a rainha D. Amélia em 1909, na época designado por Hospital do Repouso de Lisboa (5). Com a implantação da República em 1910, em 1912 alterou-se o seu nome para Sanatório Popular de Lisboa, e em 1975 foi novamente rebaptizado, desta vez em homenagem ao Professor Doutor Francisco Pulido Valente.
O esforço nacional da rainha e seus pares não foi, porém, bem percebido nem acolhido pela facção republicana da época, talvez encarando-o como acto encapotado de enaltecimento das virtudes sociais da monarquia, talvez sentindo-se ultrapassada no seu humanitarismo laico restrito a grupos sócio-recreativos dispersos, talvez ambas as coisas como se depreende na carta do conhecido escritor e jornalista republicano Alfredo Gallis (1859-1910) (6):
Il.mo e Ex.mo Sr.
Em resposta ao convite de V. Ex.ª tenho a declarar o seguinte: Aplaudindo e considerando no mais alto, a filantrópica iniciativa de Sua Majestade, a Rainha D. Amélia, para proteger os tuberculosos, em carta aberta escrevi no “Tempo” um artigo dirigido à mesma Augusta Senhora, explicando que essa simpática e benemérita campanha é contrariada nas fontes do mal pelo arquiestúpido procedimento dos nossos governos, carregando de impostos impossíveis as classes pobres, como são do domínio público o facto dos pobres vendedores da feira da ladra, dos feirantes do Lumiar, dos miseráveis donos dos quiosques do capilé, e tudo o mais que se segue. Assim, quanto maiores dificuldades cercarem a vida dos pobres não os deixando alimentar regularmente, respirarem ar de outras moradias e proverem até ao asseio do corpo, mais tuberculosos hão-de haver. O Estado desmancha com a garra esquerda o que a carinhosa Rainha de Portugal constrói com a mão direita. Podem-se curar os tuberculosos que de novo adoecerão da mesma moléstia, apenas regressem à sua vida usual até morrerem.
O meu bom senso diz-me que em frente d´um fisco rapace e cruel, que nada vê e nada atende porque o que quer é dinheiro para gastar em inconfessáveis despesas, não há esforço que sirva, nem caridade que preste. É mesmo muito de crer que os tuberculosos ainda sejam obrigados a selarem o jeito na Receita Eventual.
Ex.mo Sr., conheço o meu país e, pior ainda, a política e os políticos do mesmo.
Sou pobre e trabalho sem descanso. Uma quota anual seria um sacrifício dado de má vontade, porque revolta que o Estado não pense que o pobre tem direito a alimentar-se e a ganhar a vida.
N´estes termos não quero inscrever-me porque não tenho fé nos resultados da alevantada ideia de Sua Majestade, que bem podia dizer ao Governo que nem só os políticos comem carne e precisam de se alimentar na razão directa do que trabalham.
E pedindo desculpa desta rude franqueza
Sou de V. Ex.ª At.to, V.er e Admirador.
Alfredo Gallis.
A carta foi dirigida a um membro da Comissão Central da A.N.T., possivelmente o Dr. Curry Cabral, que convidara o jornalista a tornar-se sócio da mesma, que como se viu recusou. Contudo, e perante o surto imparável da tuberculose que o povo chamava “gripe espanhola”, a República deu continuidade ao projecto preventivo iniciado pela rainha D. Amélia, e fê-lo através do humanitarismo social independente da virtude religiosa, surgindo assim vários institutos oficiais e grupos privados, liderados por capitalistas abastados a maioria afins aos ideais da República e da Maçonaria, que prosseguiram a acção beneficente de assistência à Saúde Pública. É aqui que entra e se explica a presença do Sanatório Grandella em Cabeço de Montachique, no Concelho de Loures.
Porém, antes de tudo devo dizer que na vida em sociedade, axiomática e objectivamente, basicamente há dois tipos distintos de pessoas: as que fazem e podem errar, e as que não fazem e nunca erram. Humildemente, considero estar entre as primeiras. Isto deu aso a que a ilustre historiadora minha amiga de longos anos, Dr.ª Maria Máxima Vaz, me escrevesse em 18.06.2010: “Vitor, dizia Bento de Jesus Caraça: “Se não temo o erro, é porque estou sempre pronto a corrigi-lo”. Só não erra quem nunca fez nada. Quem faz, corre o risco de errar. Mas, o muito que já trouxe ao nosso conhecimento, generosamente, gratuitamente, pelo que me toca, agradeço reconhecida. E isso que já nos deu, é muitíssimo mais do que o que já errou. Normalmente, não se repara naquilo que os investigadores trazem ao nosso conhecimento, mas, às vezes repara-se num ou outro erro sem grande importância, que nem vem alterar o resultado final da pesquisa, que é feita e oferecida sem esperar recompensa. Maria Máxima”.
Pois bem, quando escrevi sobre As Seráficas de Tocadelos (7), situando-as num convento junto a Ponte de Lousa no sopé do Cabeço de Montachique, mais exactamente em Tocadelos, devido ao formato estrelado do edifício inacabado que está aí – estrela essa sugerindo-me tratar-se da Stella Maris – associei-o ao desaparecido Convento de Nossa Senhora dos Poderes (tema sobre o qual publiquei vários artigos no Vento Novo, jornal regional de Loures), fundado no século XVI por Dona Brites de Castelo Branco, e que estaria dentro da “Via Longa de Clarissas”, no dizer de Frei Agostinho de Santa Maria, portanto, no itinerário da saúde já referido por Pinharanda Gomes (8).
Mesmo assim, em boa verdade semelhante edifício desencaixa do conceito clássico da arquitectura de sanatório, que há outros nesta parte do Concelho lourenho. Ele apresenta dois corpos dianteiros rectangulares a toda a extensão ligados por arcos ao centro constituído de seis absidíolas, mais uma abside como corredor central indo até à entrada dianteira. O conjunto forma um M com sete espaços rectangulares no centro forma configurando uma estrela, motivo da minha sugestão inicial que levou à sua associação com o evoco mariano da Ordem do Carmelo, ou seja, Stella Maris, que também a Ordem Franciscana reconhece na ladainha como Mater Dei Regina Coeli. Como se não bastasse, a toponímia local e o concebido místico do imóvel só me reforçavam a ideia de ser esse o desaparecido convento das clarissas, tanto mais que os próprios compartimentos estão rigorosamente dispostos em conformidade com os cânones arquitectónicos tradicionalmente dados às casas religiosas de recolhimento, ou seja, os convento ou mosteiros, como então descrevi (in ob. cit.). Tudo, mas tudo garantia-me ser esse o eremitério das franciscanas de Nossa Senhora dos Poderes.
Contudo, várias vozes acauteladas, dentre elas a de Pinharanda Gomes que as encabeçou, afiançaram-me a possibilidade desse meu estudo aparentar inconclusões e “hiatos”, e todas incitaram-me a aprofundar ainda mais a investigação, o que fiz tanto no terreno como no gabinete. Ainda assim, tudo teimava em apontar Tocadelos como o sítio do convento, mas pegando na referência de Frei Agostinho de Santa Maria sobre “Via Longa de Clarissas”, aos poucos fui desviando a atenção precisamente para Via Longa, no Concelho de Vila Franca de Xira, fronteiro ao de Loures, e procurei no terreno algum vestígio dele pressupostamente instalado aí, busca que se revelou frutífera.
O documento mais antigo sobre essa casa religiosa data de 1621 e está na Biblioteca Nacional de Lisboa, levando o longo título: Livro que contém em si a fundação e rendas deste Convento de Nossa Senhora dos Poderes da Ordem de Santa Clara de Vila Longa, termo da cidade de Lisboa. Esta peça original (BNL, RES. Cód. 8591, 61 ff. numeradas) foi manuscrita antes da data apontada, ou seja, em 1615 pela escrivã do mosteiro, Soror Joana Evangelista, quando era abadessa uma sobrinha da fundadora, Madre Maria da Encarnação. Em 1621 o texto foi encadernado, sendo-lhe acrescentas as listas das religiosas que viveram no convento, pelo menos até 24 de Outubro de 1681, data em que o Provincial, Fr. Manuel de Santiago, taxou o número de freiras e educandas que ali podiam ser sustentadas. Entre elas contava-se uma supranumerária, Soror Maria da Glória, cuja genealogia inspirou a D. Francisco de Mascarenhas Henriques uma galante composição a que deu o título de Cousas maravilhosas e razões extraordinárias que sucederam para chegar a meu poder a muito esclarecida e endeusada genealogia da senhora Maria da Glória, religiosa no Mosteiro de Vialonga (BNL, RES. Cód. 6333, ff. 75 v. – 88 r).
O convento comportou sempre número de residentes excedendo a sua capacidade que não ia além de 36 religiosas, capacidade numérica igual à daquela a que estava destinado o sanatório de Montachique, hoje monumento inacabado mas que recentemente alguns quiseram destruir sob a alegação de ocupar «improdutivamente» o terreno destinado a edifícios fabris. Obviamente opus-me a tal, e houve mesmo o director proprietário de um desses jornais de Loures – Jornal de Loures – que passou por vergonha desnecessária quando quis iniciar campanha nesse sentido. O monumento está muito bem onde está e assim deve permanecer, se possível restaura-lo, tudo ao abrigo do decreto-lei 516/71 de 22 de Novembro (“Imóvel de Interesse Público”), que protege o património histórico municipal (9).
Posteriormente a 1621 quer Fr. Agostinho de Santa Maria (in Santuário Mariano, Lisboa, 1707), quer Fr. Manuel da Esperança e Fr. Fernando da Soledade (in História Seráfica da Ordem dos Frades Menores de S. Francisco da Província de Portugal, Lisboa, 1656-1721), quer ainda Jorge Cardoso (in Agiológio Lusitano, Lisboa, 1652-1744, vol. I, pág. 201, e vol. II, pág. 223), detalharam sobre o convento instalando-o em Via Longa de Clarissas e fundado em 1561 por Dona Brites de Castelo Branco (cf. História da Igreja em Portugal, de Fortunato de Almeida. Nova edição, vol. II, pág. 151, Porto, 1968). Mais tarde, Mendes Leal (in Admirável Igreja Matriz de Loures, Lisboa, 1909) e o Padre Álvaro Proença (in Subsídios para a História do Concelho de Loures, Lisboa, 1940) situarão nas cercanias de Tocadelos a existência de eremitério religioso, que terá sido definitivamente abandonado à rapina e retalho cerca de 1838 (cf. Enciclopédia Luso-Brasileira, vol. 12).
Consultando vários documentos indo dos finais do século XIX até à metade do século XX referindo o monumento em causa, apareceu-me o nome do comerciante rico Francisco de Almeida Grandella(1853-1934), como o seu idealizador para fins sanatoriais. Ainda supus que se trataria de um aproveitamento e reconstrução do primitivo edifício religioso, mas tal suposição revelar-se-ia errada, e esse erro foi induzido pela própria documentação demasiado imprecisa por confundir a localização exacta de ambos os imóveis, tanto mais que Via Longa de Clarissas desagua em Santo Antão do Tojal onde inicia a Estrada Real de Mafra que passa nas cercanias de Tocadelos, mais precisamente em S. Pedro de Lousa, aqui onde está a ruína de um outro e enorme sanatório. Este como os demais na região encerraram definitivamente em 1971, e alguns, escassos, desses edifícios foram progressivamente convertidos para outros fins. A maioria deles permanece ao abandono das ruínas…
Nesse ponto, dirigi a atenção para a presença de Grandella em Cabeço de Montachique. Procurei o projecto da obra e ele foi-me mostrado. Não data mais que 1919 e contém a legenda definitivamente esclarecedora: “Inauguração dos trabalhos para o edifício destinado a raparigas indigentes, tuberculosas (candidatas à tuberculose), no Cabeço de Montachique, em 6 de Abril de 1919 pelo Clube dos Makavenkos” (10). Esse projecto era do arquitecto Rosendo Carvalheira (Rosendo Garcia de Araújo Carvalheira, c. 1864 – Sintra, 1919), que em 1899 participara nos trabalhos iniciais de reconstrução da Sé da Guarda, prolongados até 1921. O renomeado arquitecto que foi igualmente vereador da Câmara de Lisboa, era inda membro da Associação de Amigos de Fanhões, freguesia encostada a Tocadelos que pertence à freguesia de Lousa, e cedo integrara o Clube dos Makavenkos, fundado por volta de 1880, sendo um dos seus fundadores o supracitado capitalista Francisco de Almeida Grandella, este que em 1919 publicaria em Lisboa um livro dedicado à história desse Clube misto de recreativo, beneficente, jacobino e republicano: Memórias e Receitas Culinárias dos Makavenkos (cf. Grande Enciclopédia Portuguesa-Brasileira, 12, pág. 695). Essa obra, reeditada em Lisboa em 1994 pela Marginália Editora, originalmente subscrita apenas com as iniciais do autor, destinava-se tanto à divulgação do Clube como sobretudo a conseguir verbas para subsidiar as obras de construção do sanatório em Montachique, tal qual se lê na sua página inicial: “O produto da venda deste livro, retiradas as suas despesas, reverterá a favor do Sanatório Albergaria, de Montachique, mandado erigir por iniciativa da Sociedade dos Makavenkos”. Também a folha ilustrada com o projecto de Rosendo Carvalheira, era vendida publicamente ao “preço de 5 centavos a favor das obras do Sanatório”. Houve, portanto, uma campanha publicitária intensa destinada a conseguir as verbas necessárias à realização da obra, numa época em que a “gripe espanhola” campeava e ceifava vidas a rodos por todo o país. Na propaganda feita, afirmava-se que o Sanatório Albergariapretendia “minorar quanto possível a miséria e a doença no meio da crise tremenda por que está passando o mundo inteiro” (acaba de sair da conflagração mundial de 1914-18), e apelava-se “aos novos-ricos, que têm feito fortunas fabulosas com os lucros da guerra”, que “doassem uma pequena parcela dessa enorme riqueza” às vítimas da mesma. O apelo não teve resposta, e foi o início da paragem das obras e da morte da ideia generosa que assistia ao projecto.
Francisco Grandella subsidiou fortemente o Clube dos Makavenkos – a que pertenceram, dentre outros, o contra-almirante Ferreira do Amaral, antigo presidente do Conselho de Ministros no reinado de D. Manuel II, António Batalha Reis, Júlio Mardel, Rafael Bordalo Pinheiro, Josué dos Santos, o dr. Fidelino Figueiredo e o general Filomeno da Câmara – que era grémio republicano declaradamente antimonárquico e antieclesiástico, contudo possuído dos valores humanitários laicos afins aos pedreiros-livres como se declaravam vários dos seus sócios. A convicção republicana de Grandella já se fizera sentir em 1881, quando fundou no Rossio a Loja do Povo, pintando a sua fachada de vermelho berrante, de alto a baixo, o que lhe valeu uma ordem de despejo do senhorio, um desengraçado visconde da Graça, que não gostava dessas republicanices de fachada.
O terreno de 3.550 metros quadrados em Tocadelos, onde está o imóvel inacabado, foi comprado por Francisco Grandella a António Mateus Catarino, sogro de José Alves Antão a quem entrevistei, tendo-o oferecido em 1918 à Sociedade dos Makavenkos para aí construir-se o supradito sanatório destinado ao internamento temporário para tratamento de moças ingentes tuberculosas. Situado a 200 metros de altitude a meio da encosta do Cabeço de Montachique, o plano inicial previa quartos para 36 doentes em regime de internato gratuito, quartos para vigilantes, uma grande cozinha, refeitório, varanda de cura, farmácia, sala de pensos, arrecadações, banhos, forno crematório para pensos, desinfecção e enfermaria de isolamento. Para ajudar a custear os encargos da obra, também seriam criadas 14 moradias independentes, procurando assim dar resposta “à grande falta de habitação para os que, embora com meios para se tratarem, careçam de aí se instalar” (11).
Rosendo Carvalheira traçou um esquisso grandioso para o edifício. “O conjunto do projecto é muito simples, gracioso e pitoresco e fortemente inspirado em motivos portugueses” (12), e caberia a Francisco Grandella a honra de lançar a primeira pedra de fundação (13), com pompa e cerimónia com as bandeiras desfraldadas da recente República de Portugal, do Brasil e da Maçonaria Portuguesa, ficando assim o seu nome ligado para sempre a essa obra colectiva mas dado como o exclusivo idealizador da mesma, não se preocupando os enciclopedistas posteriores com outros e quaisquer pormenores, como foi o caso de Raul Proença quando, passageira e secamente, limitou-se a apontar “o Sanatório Grandella, em Montachique” (14).
As obras iniciaram ainda em 1919, mas algum tempo depois pararam por falta de verbas, acabando por ficar para sempre inacabadas. Tal carência fiduciária atribui-se à crise económica por que o país passava, acabado de sair da I Guerra Mundial, e ao “crash” de Grandella, o principal accionista, que insensatamente pensara, como a maioria pensou, não durar mais de três meses o conflito de 1914-1918. Tanto a publicação do livro das receitas culinárias dos Makavenkos como a da folha do projecto do sanatório de Montachique, foram talvez as últimas medidas desesperadas para conseguir as verbas necessárias. O dinheiro que se conseguiu foi gasto nas pedras necessárias à construção do edifício, que vieram em carros puxados por bois das pedreiras próximas de Fanhões, de onde eram naturais muitos dos pedreiros empregados na empresa, como foi o caso do falecido senhor José Grande, contemporâneo do já referido senhor José Alves Antão.
A pretensão de fundar aí um sanatório para moças pobres atingidas pela tuberculose, não chegou a concretizar-se pelas razões apontadas, e assim o imóvel foi doado à Assistência Nacional aos Tuberculosos que nele não pegou, preferindo construir um sanatório novo junto à Estrada de Fanhões. Ficaram, como memória da obra inconcluída, os empilhamentos de pedras à esquerda da sua entrada, tudo votado ao abandono e é assim que está este monumento singular de Loures.
Pois bem, se afinal nunca houve aqui casa de religiosas, ante a evidência indesmentível, então onde estaria o antigo Convento de Nossa Senhora dos Poderes de Via Longa de Clarissas? Obviamente em Via Longa. Mas esta mistura-se com a outra e longa Via Real que passa perto de Tocadelos. Será que era mesmo aí que estava? Sim, era. Encontrava-se na freguesia de Via Longa, esta que entretanto passara do extinto Concelho dos Olivais para o de Vila Franca de Xira, Distrito e Patriarcado de Lisboa, dizendo o Padre Jacinto dos Reis sobre esse convento de franciscanas (15):
“Deste mosteiro tratam várias obras, entre as quais Mapa de Portugal (parte III); Sant. Mar. (tomo I, liv. II, tít. LXI); Port. Ant. e Mod. (vol. X). Desta última obra, a propósito, lê-se (pág. 321 e seg.): “Estava o mosteiro ameaçando ruína iminente, pelo que, por portaria de 24 de Outubro de 1838, foram as freiras transferidas para o Mosteiro de Nossa Senhora da Anunciada, do lugar de Subserra. […] Em 1873, ou 1874, o Governo pôs em praça a venda do terreno em que tinha sido edificado o templo e o mosteiro, e o resto da pedra que ainda existia. O comprador naquele chão construiu uma abegoaria e loja de ferrador”. Acrescenta ainda o Padre Jacinto Reis: “No álbum n.º 6 dos Registos dos Santosna Biblioteca Nacional de Lisboa, há uma estampa, se não duas, de Nossa Senhora dos Poderes, “orago do convento das religiosas de Vª Longa”, indulgenciada pelo Patriarca de Lisboa”.
De facto, o Inventário da Colecção de Registos de Santos, organizado e prefaciado por Ernesto Soares (Biblioteca Nacional de Lisboa, 1955), regista:
“02996 e 02997 – NOSSA SENHORA DOS PODERES – Em corpo inteiro sobre peanha, com o Menino Jesus, segurando pequeno ramo de flores, ambos coroados. INS. – Imagem de Nª Sª dos Poderes Orago da Igª e Convtº das religiosas de Vª Longa. (seguem indulgências). D. – 118 x 68 mm. P. – Buril. E. – Completa. O. – Há outra colorida (nº 02997).”
Essa imagem da Virgem dos Poderes, cuja invocação fora confirmada pelo Papa Pio IV, era considerada milagrosa pelas gentes de Via Longa e populações vizinhas. Ela possuía poderes que tudo podiam e a todos curavam. Assim, Dona Brites, fundadora do convento, viu-se contrariada no seu desejo inicial de querer dar à Mãe de Deus o título Nossa Senhora da Encarnação, ao invés de Nossa Senhora dos Poderes. A pia senhora recebera o hábito franciscano das mãos de D. Marcos de Lisboa, depois bispo do Porto, religioso dos Recoletos de Santo António, e passou a chamar-se soror Brites de São Francisco. Na base do voto da ilustre senhora esteve uma revelação celeste, a qual lhe apresentara, em sonhos e nas mãos de um anjo, o hábito franciscano: “E isto constou por testemunho da própria fundadora, e se achara em uma crónica da Ordem, que mandou fazer o R.mº P. frey Francisco Gonzaga, sendo Geral da Ordem” (BNL, RES. Cód. 8591, f. 3v). Cf. Fr. Francisco Gonzaga, De origine Seraphica et Religionis Franciscanae, parte III, cap. 17, Roma, 1587.
Praticamente todas as obras consultadas sobre o convento baseiam-se no Agiológio Lusitano, e só a de Lino de Macedo transcreve parte dum códice da Biblioteca Nacional de Lisboa referente ao assunto. Do consultado, destaco: Jorge Cardoso, Agiológio Lusitano, t. I, Lisboa, 1652, p. 201, e t. II, Lisboa, 1659, p. 223; Fr. Agostinho de Santa Maria, Santuário Mariano, t. I, pp. 437-439, 1711; Fr. Fernando da Soledade, Historia Seráfica Cronológica da Ordem de S. Francisco na Província de Portugal, t. V, pp. 86-129, Lisboa, 1721; João Baptista de Castro, Mapa de Portugal Antigo e Moderno, 2.ª ed., t. III, 1763, pp. 490-491; Augusto Soares de Azevedo Barbosa de Pinho Leal, Portugal Antigo e Moderno, vol. X, Lisboa, 1885, pp. 321-322; Lino de Macedo, Antiguidades do Moderno Concelho de Vila Franca de Xira, Vila Franca de Xira, 1893, pp. 337-339; Francisco Câncio, “As milagrosas Imagens do Convento de Nossa Senhora dos Poderes”, Ribatejo. Casos e Tradições, vol. II, s. 1, 1949, pp. 366-372; Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, nova edição, preparada e anotada por Damião Peres, Porto, 1968; Rui Parreira, “Inventário do Património Arqueológico e Construído do Concelho de Vila Franca de Xira”, Boletim Cultural da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, n.º 1, 1985, p. 115.
Estou quase convencido que Rosendo Carvalheira conhecia todos esses elementos (tanto mais que andou de relações próximas com as dignidades eclesiásticas e trabalhou no restauro de várias igrejas matrizes, uma delas, como já referi, a da cidade da Guarda), e conhecendo-os tê-los-á usado para em Tocadelos imitar ou recriar o convento desaparecido, mas em nova versão tanto arquitectónica como na finalidade: de eclesial a hospital, para todo o efeito, sempre de reclusão. Tanto mais que tradicionalmente o orónimo “Virgem dos Poderes” é assinalado pela Stella Maris, epíteto sideral de Vénus. Além disso, o convento ainda existia em seu tempo, certamente muito arruinado mas suficiente para inspirá-lo ao traçado original deste pretendido sanatório lourenho.
Dele remanesce, hoje mesmo, na Quinta de Santa Maria, onde esteve o convento das clarissas de Via Longa, passadas em 1838 para o outro franciscano de Subserra de Castanheira, uma quadra contígua a um portal adornado na parte superior por elegantes enrolamentos de cantaria, encimado por uma cruz franciscana com a legenda I.N.R.I. Transposta a entrada, notam-se os restos de uma nora e do tanque adjacente, além dos muros da cerca do convento cuja igreja, desaparecida, possuía dois altares colaterais: um dedicado a S. João Baptista e outro a S. João Evangelista, presidindo ao centro, no altar-mor, Nossa Senhora dos Poderes, que também não deixou de ser a Stella Maris da Ordem dos Templários que no século XIII por aqui andou, tendo-lhe pertencido os lugares próximos da Granja e de Alpiatra (16).
Se, eventualmente, a fonte de inspiração de Rosendo Carvalheira para a arquitectura do pretendido sanatório de Montachique foi a do convento franciscano de Via Longa, no entanto aplicou aqui o simbolismo maçónico que era afim à sua condição de afiliado nessa Ordem (17), fazendo recurso dos princípios da arquitectura sagrada a que juntaria a disposição e toponímica do lugar, para reforçar ainda mais o significado velado que pretendeu deixar na feição geral do edifício, para todo o efeito, posto sob o evoco da misericórdia maternal da Virgem Mãe de Deus que a todos socorre e acolhe na aflição corporal, volvendo-se os olhares sofridos para a esperança derradeira nesta lourenha Stella Maris.
Se bem que a iniciativa de construção do sanatório tenha partido da colectividade do Clube dos Makavenkos, também é verdade que alguns dos seus sócios mantinham reuniões maçónicas em Fanhões, localidade próxima de Montachique, onde possivelmente haveria uma Loja ou no mínimo um Triângulo, constituído por três Mestres Maçons, e daí terá irradiado a ordem de proclamação da República no dia 4 de Outubro de 1910, portanto, um dia antes da data combinada, certamente por desencontro de informações entre os republicanos de Loures e os de Lisboa, motivo que quase levou ao fracasso da revolução, o que não aconteceu por o Governo Central do Reino estar profundamente dividido, com as várias partes políticas cada uma puxando para o seu lado.
Já no exílio, D. Manuel II atacou o contra-almirante Ferreira do Amaral, apodando-o depreciativamente de “o Makavenko”. Anos antes, em pleno Parlamento, Ferreira do Amaral, acusado do dito «crime», respondeu afoitamente aos deputados contrários: “Makavankei e makavenkarei”.
Acerca do significado do nome Makavenko, na contraparte do livro de Francisco Grandella o seu amigo Josué dos Santos dá-lhe uma origem muito singular a qual, creio, não passa de farsa satírica, mesmo assim deixando a forte impressão de pretender esconder o sentido verdadeiro do orónimo próximo do filólogo sânscrito Makara, termo utilizado para designar a Hierarquia de Mestres Espirituais do chamado Governo Oculto do Mundo organizados na Atlântida e que desde então agem como encobertos nos bastidores da sociedade humana:
– “Makavenkos” eram um povo que existia aqui, no nosso paiz, e provincias vascongadas, vindo do Japão, das ilhas Curilas, muito antes da civilisação grega, antes do desapparecimento da Atlântida, e que tinham uma seita que professava uma espécie de culto pela mulher esbelta, mundana, com quem conviviam e protegiam aproveitando a mesma para fins de utilidade geral.
Apesar de saltar à primeira vista o Clube dos Makavenkos não ter passado de associação jantarista e boémia compartilhada por homens e mulheres, sobretudo homens, ainda assim vez por outra benfeitores dos desfavorecidos, na verdade terá sido muito mais que isso.
Esse grémio foi fundado inicialmente por 13 makavenkos ordinários unidos sob o lema “Um por todos e todos por um”, como se vê ornamentando a capa do Acto Adicional aos Estatutos da Sociedade dos Makavenkos, prolongamento dos Estatutos do Regimento Makavenkal publicados em 1900, cujos “princípios gerais” dizem ser seu patrono o Patriarca Noé, este que também figura com a sua família no painel das Lojas das Eleitas da Maçonaria de Adopção. A Sociedade reunia-se nas noites de sexta-feira, consignado dia de Vénus, planeta apontado como o da Stella Maris carmelita, mas aqui transformada em makavenkal, antes, makárica.
Com efeito, no simbolismo maçónico a estrela de sete pontas ou heptágono é tomada como representação do Mestre Maçom, que simbolicamente exprime aquele que alcançou a Perfeição Humana, consequentemente é tomado como imagem do Makara ou Homem Perfeito, o Adepto Real senhor da Vida e da Morte, tal qual está assinalado no Apocalipse (1:16): “Tinha ele na sua destra sete estrelas; e da sua boca saía uma aguda espada de dois gumes; e o seu rosto era como o Sol, quando resplandece na sua força”.
Lançada a pedra de fundação do Sanatório Albergaria no referido dia 6 de Abril de 1919, e ao qual se deu o nome de Catedral (a escolha deste nome não terá sido mero acaso), estiveram presentes ao acto solene, dentre muitos outros, o maçom e makavenko famoso vinicultor Camilo Alves, e o senhor Leitão, igualmente makavenko, proprietário do restaurante Abadia no Palácio Foz, Lisboa (in Francisco Grandella, ob. cit., pp. 187-193). Nessa cerimónia de inauguração ficou um auto lavrado em pergaminho, encerrado num cofre nos alicerces, junto a um bilhete-postal dirigido “aos vindouros”, redigido nestes termos: “Ó vós que encontrastes o caminho já desbravado, se alguma coisa de bom fizestes pela Humanidade, nós vos saudamos…”
Semelhante à rapina sofrida pelo convento de Nossa Senhora dos Poderes, o mesmo aconteceu na igreja paroquial de Fanhões. Edificada em 1575 e restaurada em 1796, seria incendiada e rapinada (14.5.1915) pelos carbonários de Loures, que começaram pela delapidação do seu aparelho de azulejaria do século XVIII (in Aditamento n.º 3de Pinharanda Gomes ao livro Admirável Igreja Matriz de Loures, de Joaquim José da Silva Mendes Leal, Lisboa, 1909).
Igualmente o etimólogo Fanhões, corruptela de Fanhais, não deixa de interessar ao contexto geográfico e mítico onde se inscreve o Sanatório Albergaria, apodado Catedral. Segundo o professor Batalha Gouveia (in O etimólogo Fanhais, Lisboa, 1983), esta palavra procedente do baixo-latim fanalis é uma importação do grego phanós, significativo de “tocha”, “facho” ou “lanterna”. Ora o phanós helénico tem por matriz a voz egeia wanu, significando literalmente “filha” (W) do “céu” (anu). O hierónimo Wanufoi adoptado pelos latinos para denominarem aquele luminoso planeta que, tal como um facho, anuncia o aparecimento do Sol. Trata-se de Uénos – posteriormente prosodiado Vénus – ou a Stella Maris que mesmo antes da narrativa bíblica envolvendo o Profeta Elias e que a Ordem do Carmelo assumiria como sinal mariano, já era a estrela guia dos antigos navegadores.
Acrescento, ainda, que a par da Virgem Mãe é Orago de Fanhões São Saturnino. No santoral cristão considera-se este personagem patrono de ascetas, anacoretas e eremitas, com isso associando-o à ideia clausural havida nas clarissas de Via Longa sob o patronímico Nossa Senhora dos Poderes, cujo «segundo tomo» gorado ter-se-á pretendido fazer aqui em Cabeço de Montachique junto a Tocadelos, terra saloia dominada pela devoção à Estrela-do-Mar, e tanto assim é que uma loa cantada pelos romeiros da Confraria do Cabo, Na Ocasião de ser transportada a Milagrosa Imagem de Nossa Senhora do Cabo Espichel da Parochial de São Pedro de Louza para a Freguesia de Santo Antão do Tojal (impressa na Imprensa Nacional, Lisboa, sem autor e sem data mas que presumo ser 1852), com ternas e doces palavras remata a exaltação à sempiterna Stella Maris:
Immaculada Senhora,
Virgem sacrosancta e bella,
Vara de Jessé florida,
Do mar luminosa estrella.
*
Com que prazer vosso povo
Vem receber neste dia
A vossa Imagem Sagrada
Sancta, divinal Maria!
NOTAS
1) Augusto da Silva Carvalho, História da Medicina Portuguesa. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1929.
2) Apesar da grande campanha de conscientização sobre os perigos da tuberculose e as medidas de prevenção assumida pela Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, a partir de 1901, foi em Coimbra que se realizou em 1895 o 1.º Congresso dedicado à terrível epidemia, durante o qual o professor Augusto Rocha, realçando a eficácia dos “ares” na cura dessa doença, citou uma frase de Florence Nightingale, suficientemente elucidativa dessa importância: “Para os tísicos, respirar um ar puro é simplesmente respirar a vida”. – In La lutte contre la tuberculose au Portugal. Aperçu historique, Boletim da A.N.T., 4.ª série, volume I, página 17, Setembro de 1937.
3) Costa Sacadura, A Obra da A. N. aos Tuberculosos e a Rainha D. Amélia através de algumas cartas inéditas. Lisboa, 1949.
4) Vitor Manuel Adrião, Quinta da Regaleira (Sintra, História e Tradição). Editora Dinapress, Lisboa, 2013.
5) António Gonçalves Santiago, A Tuberculose e os Dispensários. Dissertação inaugural na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. Impresso pela Casa dos Tipógrafos, Lisboa, 1911.
6) Alfredo Gallis, Os Decadentes – Tuberculose Social, IV. Livraria Central, Lisboa, 1902.
7) Vitor Manuel Adrião, Ode a Loures (Monografia Histórica). Edição do Pelouro do Turismo da Câmara Municipal de Loures, 1993.
8) Pinharanda Gomes, Povo e Religião no Termo de Loures. Edição da Paróquia de Santo António dos Cavaleiros, Loures, 1982.
9) Vitor Manuel Adrião, Rotas de Loures. Edição do autor subsidiada pelo Município, Loures, 1994.
10) Arquitectura Portugueza, n.º 23, 1920.
11) O Século, II Série, n.º 686, 14 de Abril de 1919.
12) Arquitectura Portugueza, Julho de 1918.
13) Illustração Portugueza, 1919, artigo ilustrado com a fotografia do evento.
14) Raul Proença, Guia de Portugal, volume I, página 473. Lisboa, 1924.
15) Padre Francisco dos Reis, Invocações de Nossa Senhora em Portugal (De Aquém e Além-Mar e seu Padroado), pp. 456-457. Lisboa, 1967.
16) Maria Micaela Soares, A Granja de Alpiatra nas Memórias Paroquiais de 1758. “Boletim Cultural” da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, n.º 3, 1989.
17) “CARVALHEIRA (ROSENDO GARCIA DE ARAÚJO) – Iniciado em data desconhecida com o nome simbólico de Rómulo e regularizado em 1893 na Loja Tolerância, de Lisboa. Pertenceu depois às Lojas Fénix (1905), Fiat Lux (1906) e Liberdade e Justiça (1913), todas daquela cidade. Ascendeu (1906) ao Grau 33 do Rito Escocês Antigo e Aceite, de cujo Supremo Conselho fez parte. Desempenhou altos cargos no Grande Oriente de Portugal e no Grande Oriente Lusitano Unido, entre os quais o de Presidente do Grande Tribunal Maçónico.” – A. H. de Oliveira Marques, Dicionário de Maçonaria Portuguesa, volume I, pp. 280-281. Editorial Delta, Lisboa, 1986.
22 de Maio de 2014