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Granja da Paradela – A Barruncha Maltês
Quinta do Barruncho
Entre a Póvoa de Santo Adrião e Odivelas, defronte ao Olival Basto, encontra-se a quinta hoje conhecida pelo nome de Quinta do Barruncho, outrora, Quinta da Granja (da Paradela) ou Quinta de Nossa Senhora do Rosário, a quem tinha sido dedicada a sua capela. Invocava-se também, aí, o Senhor do Bom Princípio.
Segundo Anne de Stoop (in Quintas e Palácios nos arredores de Lisboa, pp. 53-56. Livraria Civilização, Porto, 1986), “a casa, construída por volta do ano 1700, teria sido uma comendadoria da Ordem de Malta, o que explicaria o tamanho imponente da capela”.
Concordo com a ilustre autora mas o tema carece desenvolvimento, pois já se regista datada neste lugar a presença armoriada junta à cruz signatária da Ordem de São João de Malta, muito antes do início do século XVIII.
Com efeito, à beira do caminho que leva a esta Quinta do Barruncho, muito próxima dela conserva-se um pórtico barroco armoriado tendo na trave horizontal superior gravada a Cruz da Ordem de Malta, com a data 1638. Seria a entrada para a granja maltesa de que ainda subsistem as ruínas da casa e da capela anexa, num estado de verdadeira lástima, no cimo do Morro da Codiceira.
Essa seria a primitiva granja maltesa, antes de ser comenda num espaço novo, e segundo as crónicas antigas recuando ao tempo de D. Dinis, pertenceria ao espaço vastíssimo da antiga coutada real nesta parte do Termo, sendo também afamada pela abundância de trigo e de fruta que aí se plantavam. Vários autores reputados falam dela. Por exemplo, Américo Costa no seu Diccionário Chorographico de Portugal Continental e Insular (Porto, 12 vols., 1929-1949), assinala-a como “Codiceira ou S. João da Coidiceira” (vol. V, p. 535), situando abaixo dela a “Granja da Paradela, ou Casal da Paredela, ou Paradela, ou Granja da Póvoa” (vol. VIII, p. 1117). Nesta viria a ser a edificada posteriormente a Quinta do Barruncho, tudo pertencendo originalmente ao mesmo espaço maltês, antes da sua repartição em várias e pequenas quintas, possivelmente após 1700. De maneira que “a Granja da Paradela conserva o nome antigo, achando-se agora uma parte na freguesia da Póvoa”, como atesta, após consultar o autor por último citado, Pinharanda Gomes (in Santo António dos Cavaleiros – Monografia Histórica. Edição da Paróquia de Santo António dos Cavaleiros, Loures, 1992), historiando nas páginas 117-118 dessa sua Monografia este espaço monumental em causa, seguindo a descrição de Anne de Stoop a qual, aliás, sei-o, havia consultado pessoalmente este autor para a feitura do seu precioso livro com belíssimas fotografias.
Por sua vez, já antes Joaquim José da Silva Mendes Leal (in Admiravel Egreja Matriz de Loures (Uriunda do V. Seculo, edificada pelos Templarios, analiticamente historiada em livro ornado de estampas. Lisboa, 1909) descrevia no capítulo XIV dessa sua obra rara repartida em três partes: “Granja da Paradela – Tem ermida particular da quinta dos Barrunchos”. Pondo uma nota marginal: “Entre a Póvoa de Santo Adrião e Odivelas, defronte de Olival Basto. A capela já não existe”. Mesmo assim indica os nomes de vários confrades da Irmandade dos Escravos do Santíssimo da igreja da Mealhada (conventinho arrábido) moradores na Granja da Póvoa em 1827, como sejam os seculares António Lourenço e Isidoro António.
O Padre Álvaro Proença (in Subsídios para a História do Concelho de Loures, I Volume (Loures). Lisboa, 1940), diz deste lugar na página 13 dessa sua obra hoje raridade: “Codiceira – Está situada num monte e tem um sítio anexo chamado Granja. Deu-lhe outrora muita importância a quinta eu foi de António Vamprat e a sua abundância de trigo e fruta”. E na página 80, quase de corrida, assinala a ermida do “Senhor do bem Princípio – Existiu na Granja da Paradela e pertencia à Quinta dos Barrunchos. Era primorosa, muito bem acabada e com lindíssimas imagens de devoção popular”.
Durante o período da ocupação Filipina de Portugal, esta Granja da Póvoa (onde me informaram terem achado nela algumas moedas dessa época) terá mantido o seu recato de propriedade agrícola, não se sabendo se sob esse aspecto encobria o outro mais importante de centro conspirador contra as Cortes de Madrid, mas se sabendo a Ordem em Portugal ser absolutamente desfavorável à ocupação espanhola, como se observa no apoio político, militar e fiduciário que discretamente deu ao partido independentista do duque de Bragança, futuro rei D. João IV, o Restaurador em 1640, mesmo sendo em 1638 um espanhol o Grão-Mestre da Ordem de Malta, Juan de Lascaris-Castellar (1636-1657). Após a Restauração Nacional e o afastamento das personalidades e políticas de Espanha, a propriedade da Paradela terá começado a perder a sua influência até falecer por inteiro a favor do levantamento cerca de 1700 da Quinta do Barruncho, mais ampla, rica e condigna à condição fidalga dos seus primeiros moradores. Como golpe de misericórdia, com a vitória da revolução republicana de 5 de Outubro de 1910, a cruz que encimava a capela primitiva da Granja foi deitada abaixo por um jacobino contrariado, e a casa transformada ora em armazém de cereais (o mesmo aconteceu à do Barruncho, que desde essa data esteve abandonada por largo tempo), ora em palheiro, ora em viveiro de cobras e ratos degradante da condição humana que aí vive paredes meias com a miséria mais constrangedora.
Por esta granja maltês, cuja capela presumo dedicada a São João Baptista, Orago da Ordem, cujo domínio era reputado como um dos primeiros do Termo, terão passado proeminentes figuras nobiliárquicas da História de Portugal. Vê-se, por exemplo, no brasão esquartelado de 1638 encimando o portal no sopé da Codiceira, as Armas dos Coelhos e dos Carvalhos, com isto pressupondo que alguns membros dessas famílias entrecruzadas por laços nupciais tivessem pertencido à Ordem de Malta e deste sítio fossem donatários.
Para melhor se enquadrar a orgânica medieval e renascentista das mais-valias imóveis ou prediais da Ordem do Hospital, depois de Malta, tem que cada Província desta estava repartida em espaços maiores ou menores dentro da jurisprudência e geografia Hospitalária primeiro, depois Maltesa. As possessões maiores chamavam-se Priorados ou Preceptorias, as menores Bailios ou Comendas, e as ínfimas Granjas ou Fazendas (vd. de minha autoria, Portugal Templário – Vida e Obra da Ordem do Templo. Via Occidentalis Editora Lda., Lisboa, Setembro de 2007).
O primeiro nome dessa Instituição religiosa e militar foi o de Ordem de São João de Jerusalém (fundada em 1113), também conhecida por Ordem do Hospital ou dos Hospitalários, e depois de Rodes (1312). Após a sua transferência para a Ilha de Malta (1530), herdou desta o nome que se universalizou.
Nomeada Congregação em 1113 por bula do Papa Pascoal II, que lhes deu o Orago São Baptista e a Regra de Vida, cedo os Hospitalários transferiram-se para o Médio Oriente durante as primeiras Cruzadas, acompanhando a Ordem dos Templários, e ambas viriam a fixar a sua Casa-Mãe em Jerusalém. A Cruz do Hospital, originalmente simples, de braços iguais, evolui com o tempo e por meados do século XIII já assumia a forma patada de oito pontas.
Em 1122 a Ordem de São João do Hospital já ocupava o mosteiro de Leça do Bailio, a NE do Porto, tendo sido D. Afonso Pires Farinha, valido de D. Afonso III, o primeiro a usar o título de Prior em Portugal. Em 1350 a cabeça da Ordem foi estabelecida no Priorado do Crato.
Quanto à Quinta da Azinhaga do Barruncho – termo este associado ao medieval barragão, “companheiro”, mas que Pinharanda Gomes, aventando sem afirmar (in ob. cit., p. 117), diz que “a etimologia é duvidosa: Barruncho = alguidar de barro? – dela faz registo uma carta datada de 12 de Maio de 1758, em resposta ao célebre inquérito do Padre Luís Cardoso, assinalando que “na Quinta da Granja, onde vive a viúva de António van Praet, existe uma magnífica capela dedicada ao Senhor do Bom Princípio, extremamente bem feita e bem decorada de imagens piedosas, muito particularmente a do Senhor que está sobre o altar-mor… obra muito singular” (in Inquérito Paroquial de 1758. Arquivo Nacional da Torre do Tombo).
A família Praet, que habitou este palácio, provém do condado da Flandres, onde teve cargos principais, nomeadamente, os de burgomestres e vereadores de Bruges e Dermonde. Quanto a António van Praet, filho de Jácome van Praet e de D. Micaela da Silva, foi homem de negócio, o mais rico particular de Lisboa no seu tempo, tendo palácio na cidade e grande quinta na Granja da Paradela. Mereceu grande estimação do rei D. João V e serviu o Tribunal do Santo Ofício no cargo de familiar, tendo-se recebido com D. Antónia Mariana Teresa Salgado, filha herdeira de Gaspar Salgado, cavaleiro da Ordem de Cristo e secretário da Junta dos Três Estados, e de sua mulher D. Águeda Maria Josefa Leopoldina Cardoso de Vargas, de cujo matrimónio proveio a geração belgo-portuguesa de apelido van Praet, usado com ou sem preposição (vd. de minha autoria, Granja da Paradela – A Barruncha Maltês. Revista Loures Magazine, Ano VI, n.º 22, Abril/Junho, 1994).
As Armas usadas, eram: de prata, com três folhas de golfão de verde. Timbre: uma folha do escudo (in Armorial Lusitano – Genealogia e Heráldica, pp. 449-450. Lisboa, 1961).
Quanto à ligação da família Praet com a Barruncho cujo nome ficou perpetuado na toponímia deste lugar, ter-se-á de situar a genealogia de Vicente Ferrer Barruncho (n. Lisboa, Socorro, 17.07.1726), fidalgo da Casa Real e cavaleiro da Ordem de Cristo tal como seu pai, Filipe Simões Barruncho (n. 10.05.1692), sendo sua mãe Catarina da Encarnação (n. 24.11.1694).
Em 03.10.1756, na ermida de Nossa Senhora do Pópulo, Lisboa, Vicente Ferrer Barruncho casou com Maria Leonor Antónia da Nazaré Teixeira (n. 07.05.1731), de quem tiveram os seguintes filhos: João Pedro Barruncho (n. 03.09.1757) e Manuel Joaquim Barruncho, que viria a casar com Maria do Carmo Rebelo de Vasconcelos.
João Pedro Barruncho casou com Efigénia Rosa Salgado van Praet e tiveram a seguinte descendência: Antónia Maria Brígida van Praet Barruncho (que viria a casar com António Joaquim Bandeira), Henrique Eduardo Barruncho e João Vicente Barruncho.
Efigénia Rosa Salgado van Praet (n. 21.09.1773) era filha de António Salgado van Praet (c. 1740) e de Mariana Tomásia Felizarda da Fonseca Varela da Bandeira de Oliveira da Mata (n. 14.03.1744) – in D. Luís de Lancastre e Távora, Dicionário de Famílias Portuguesas, Lisboa, 1989.
Muitíssimo mais tarde, em 1905, passando pela Póvoa de Santo Adrião aquando do seu périplo De Benfica à Quinta do Correio Mor (Lisboa, 1905), Gabriel V. Pereira recorda ter aí visto “algumas boas construções antigas, agora em ruínas”. Tal era, provavelmente, nessa altura, o estado em que se encontrava a Quinta do Barruncho que chegou a ser depósito de cereais antes de ter sido esplendidamente restaurada, de 1957 a 1959, pelo Cônsul português no Luxemburgo, Dr. João Maria Bravo, cedendo às insistências da sua esposa que o impeliu a realizar a feliz obra de restauro do imóvel.
A fachada da construção principal, evocando um tanto o barroco dos países nórdicos, é de uma grande originalidade. Tendo por centro a capela, é sobrepujada por uma larga empena trabalhada, no cimo da qual implanta-se uma cruz com um campanário de cada lado. Ao centro da fachada e sobre o janelão central, o brasão dos van Praet.
No interior, o altar-mor da capela ostenta ainda o famoso Senhor do Bom Princípio, magnífico e impressionante crucifixo de tamanho elevado remontando ao período da construção do edifício (século XVIII). Dois missais antigos (um do mesmo século XVII e outro do XVIII) mantêm a memória do culto já não celebrado mas que teve grande fama na região. Os candelabros são da mesma época. A arquitectura do templo, majestoso apesar de não muito comprido mas de paredes elevadas com coro e janelas laterais destinadas aos senhores da casa acompanharem de cima as celebrações litúrgicas, um pouco austera, foi enriquecida mais tarde, por volta de 1740, com uma decoração de azulejos azuis e brancos, de excelente qualidade. Esses silhares de ambos os lados, primitivamente cercados por uma bordadura recortada, podem ser atribuídos à oficina de Bartolomeu Antunes (cf. Anne de Stoop, ob. cit.). Vêem-se ainda dois quadros de grande primor artístico possivelmente do século XVIII, um deles retratando São Domingos de Gusmão recebendo o Rosário das mãos da Virgem.
Na nave, à esquerda, pode identificar-se a hagiografia de São Maximino pela legenda “Maximino, eu te baptizo”, escrita por debaixo da cena que representa o Cristo baptizando o santo. À direita, é ilustrada a célebre Batalha Naval de Lepanto, onde, em 1571, as forças cristãs, comandadas por D. João de Áustria, esmagaram a frota otomana, ajudadas maioritariamente pelos cavaleiros da Ordem de Malta, vitória retumbante que veio a dar lugar a uma grande devoção por Nossa Senhora do Rosário, a quem é dedicada este templo. Por isso, nesse combate naval se podem distinguir, nos pavilhões içados ao alto de soberbos mastros, as imagens de Cristo e da Senhora do Rosário, lado a lado com o Crescente turco.
Todo o resto da habitação foi profundamente remodelado quando dos trabalhos de restauro nos fins dos anos 50 do século passado. Ainda assim, algumas salas conservam o seu tecto em masseira, cujas pinturas puderam ser recuperadas. Sobre um deles, de todos o tecto mais belo, o espaço é enquadrado por um conjunto de caixotões e cantoneiras, no centro dos quais, além dos monogramas da Virgem e do Cristo, se vêem saborosas carrancas e molduras, interpretadas num tom jubiloso que não deixa de evocar um tanto a fachada.
Por entre os móveis e os quadros, escolhidos cuidadosamente, pode admirar-se uma pequena tela do século XVIII, apaixonante caricatura da morte, onde se vê num quarto luxuoso – coberto por um tecto em masseira “rocaille” – um homem que agoniza, comprimindo-se à sua volta médicos e serviçais, herdeiros e amigos, anjos e diabos…
No terraço, aprecia-se uma interessante fonte barroca defronte a uma mesa do mesmo estilo, ainda que sem dúvida seja no jardim que pode apreciar-se o “ex-libbris” desta quinta: a monumental fonte barroca, que descendo pela parede constitui-se de um engenhoso empilhamento em patamares de pedras esculpidas e rochedos em equilíbrio, formando oito quedas de água de uma cascata caindo dentro de espaçosa bacia redonda.
Além das primitivas pedras de mó e gárgulas de goteiras esparsas pela propriedade, vêem-se ainda pequenas estátuas de meninos fáunicos, belos tanques, silhares de azulejos (observando-se num o pormenor curioso e raro de um dentista operando um paciente segundo o costume do século XVIII, como seja um assistente agarrando-lhe as pernas e, provavelmente após emborcar uns copos de aguardente a guisa de anestesia, o operador arrancar-lhe sem mais nem quê o dente afectado) e uma pequena imagem em terracota (recentemente roubada) de Santo António com o Menino, possivelmente dos inícios da capela. Há muita harmonia em todo este espaço palaciano, autêntico oásis face ao meio circundante (exterior).
Os tanques e fontes desta quinta, assim como de toda a região circunvizinha, são alimentados pelas águas subterrâneas descendo da zona do Monte, parte delas canalizadas por mina cuja entrada alpendrada abria para uma escadaria levando ao interior repartido em várias galerias. Era assim que um aqueduto primitivo de vários arcos recebia o líquido puro canalizando-o para o interior da herdade. Hoje, com as obras recentes de urbanização que vêm desde a Cidade Nova e se estendem pela Paradela e Granja, tanto a mina quanto o aqueduto desapareceram sem que fosse feita coisa alguma. E coisa alguma foi feita para poupar à inclemência recente uma ponte medieval (possivelmente românica, antes, romano-árabe) que terá servido e muito aos moradores deste sítio da Granja da Paradela em 1638.
Todo o património histórico da Granja da Paradela carece de inventariação e intervenção imediata por parte da autoridade municipal de Odivelas, ao abrigo da protecção legislativa existente da Assembleia da República (Imóvel de Interesse Público. Decreto-Lei 516/71, de 22 de Novembro).
O progresso social, urbanístico, não deverá colidar com a manutenção da memória histórica testemunha da evolução de um povo. Um povo que não conheça a sua origem, a sua História, é como aquele que não sabem quem foram os seus pais, não tem norte familiar, anda sem referências como um órfão qualquer. Certamente o Concelho de Odivelas não merece isso, e mais que ninguém a antiga Granja da Póvoa, hoje Póvoa de Santo Adrião, e todo o espaço do Barruncho – Granja da Paradela.
A Paradela é, pois, paragem obrigatória no roteiro fabuloso do património histórico monumental de Odivelas. Vale a pena visitá-la.
Vitor Manuel Adrião
historiador, com diversos trabalhos sobre a Região Saloia.
– “Santo António dos Cavaleiros – História e Tradição”
– “Mitos e Tradições Saloias”
– “Loures e os Templários”
– “Frielas – Memorial Histórico”
– “O Giro do Círio dos Saloios”
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