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[ N.R. A propósito de mais um aniversário da implantação da República]
A História da 1.ª República não pode ser avaliada somente pelas medidas políticas, embora essas fossem as que mais marcaram a diferença entre o regime monárquico e o republicano.
Não pode resumir-se ao conhecimento das grandes figuras do republicanismo e ao seu pensamento, às teorias e princípios que defendiam, aos seus actos e medidas preconizadas ou tomadas quando estiveram no poder.
A história da 1.ª República é muito mais do que isso, embora isso já seja muito.
Há outras medidas também importantes e há outras figuras que, embora pouco conhecidas, são também os construtores da República.
Mas para conhecermos esta vertente da história da República, é indispensável conhecer a vida de dificuldades e pobreza do povo anónimo, os movimentos operários e a sua relação com o poder, assim como a situação do Portugal económico. Sem estes aspectos, nunca compreenderemos por que não vingou a 1.ª República. Não tenho a pretensão de trazer ao conhecimento do leitor, toda a história deste período. Até porque o que ignoro é infinitamente mais do que aquilo que sei, mas quero alertá-lo para o grande interesse que essa face da República tem. As fontes são abundantes, os temas aliciantes, mas os investigadores são poucos. Não existe a carreira de investigador nesta área.
Não quero deixar passar o ano do centenário da implantação de Republica, sem destacar pelo menos um republicado nas memórias locais – Augusto Dias da Silva.
Nasceu em Lisboa e foi proprietário no concelho de Loures, a que nós pertencíamos e a história de Loures, até 1998 é também a nossa história.
Era um empresário com vida relativamente desafogada, mas optou por defender mais as causas dos operários do que as dos empresários. Herdou de seu pai uma fábrica onde, desde muito jovem, tomou contacto com a vida difícil dos trabalhadores. Terá sido essa a razão da sua opção, não deixando de considerar que, acima de tudo, se deve ao seu temperamento.
Apesar disso, o conhecido capitalista, Henrique Sommer teve uma sociedade com ele e foi seu grande amigo, amizade que se manteve mesmo quando a actividade partidária de Augusto Dias da Silva se desenvolvia numa área que era mais do interesse dos operários do que dos capitalistas.
Teve valor político para desempenhar os cargos de Ministro do Trabalho, deputado, de Vice-presidente da Câmara Municipal de Loures e de vereador da Câmara de Lisboa.
Grande desportista, praticou natação, remo, polo aquático, modalidades em que se distinguiu e arrebatou 1.ºs prémios; desempenhou, ainda, o cargo de Director do Sporting.
Foi jornalista e uma destacada figura do Partido Socialista, fundado a 10 de Janeiro de 1875 por Azedo Gneco, José Fontana, Antero de Quental e Nobre França, para falar apenas nos mais conhecidos daquele tempo. Político de nobres ideais, pôs em prática aquilo que defendia em teoria, levando isso ao extremo da generosidade e da solidariedade para com os que se encontravam desempregados.
Enquanto teve meios, não permitiu que passassem fome os que se abeiravam da sua casa pedindo ajuda. Mas, infelizmente, a sua generosidade era maior do que os rendimentos, o que chegou a causar-lhe sérias dificuldades e a colocar em risco os seus bens.
Foi um político seriamente empenhado em resolver os problemas sociais mais graves do seu tempo. As medidas que tomou, todas elas pioneiras, quando Ministro do Trabalho, são a prova do que afirmo e algumas delas ainda não foram ultrapassadas, das quais destaco as que me parecem de realçar:
– o horário de 8 horas de trabalho;
– os seguros sociais obrigatórios;
– subsídio na velhice, na invalidez e na doença;
– apoio económico às mulheres grávidas necessitadas;
– construção de bairros sociais.
Estas são algumas das suas melhores iniciativas governamentais e tão inovadoras para a época, que há muito quem pense que são obras mais tardias. Estão neste caso os bairros sociais. Embora o seu projecto englobasse 7 bairros, ele conseguiu ver concretizado apenas o bairro do Arco do Cego, o qual era dotado de todos os equipamentos necessários aos residentes, desde posto médico e primeiros socorros, maternidade, infantário, escola, a casa da cultura com biblioteca, salão de festas e espectáculos, ginásio e espaços para actividades recreativas. Dispunha de cantina que, além de todos os bens de consumo, fornecia ainda refeições já preparadas. Estava também calculado o preço especial dos bilhetes dos transportes, para os locais de trabalho.
A sua capacidade de concepção e realização ficou ainda grandemente comprovada quando foi Vice-presidente da Câmara Municipal de Loures, tendo apresentado ao Governo um projecto de “Ressurgimento da Várzea”, que foi aprovado e recebeu os maiores elogios de alguns Ministros e até de deputados, apesar de, nem uns nem outros serem do seu partido.
O plano desse projecto incluía as seguintes obras:
– Valorização do solo agrícola;
– Abertura de um canal que ligasse a foz do rio Trancão à Calçada de Carriche, com dimensões suficientes para a navegação de barcos que servissem para o transporte de pessoas e bens;
– Construção de uma linha férrea de Lisboa à Ericeira, atravessando todo o Concelho de Loures, tendo, entres outras, estações em Odivelas e Caneças;
– Fundação de uma escola pós-primária em cada freguesia do Concelho;
– Construção de um hospital; chegou a estar aprovado o projecto:
– Criação de instituições de assistência;
– Montagem de uma rede telefónica pública;
– Organização do serviço de incêndios.
Uma vez aprovado o projecto, lançou de imediato mãos à obra, começando pela abertura do canal e a valorização do solo que, antes de mais, era preciso enxugar, encaminhando as águas paradas nos terrenos pantanosos, para os leitos da bacia hidrográfica do rio Trancão.
Este trabalho exigia avultados capitais, de que a Câmara não dispunha, e que só foi possível obter graças às diligências e aturada persistência de Augusto Dias da Silva, junto da Caixa Geral de Depósitos.
A Alemanha tinha sido condenada ao pagamento de indemnizações, quando do fim da primeira Grande Guerra. Augusto Dias da Silva reclamou a parte que viria a ser atribuída ao Concelho de Loures.
Foi enviado a Paris para participar nas negociações e conseguiu que fossem atribuídas a Loures cerca de 500 mil libras, todo o material circulante para o caminho-de-ferro e o equipamento necessário para o funcionamento do hospital, além dos custos de construção do edifício.
Foi o único município do País que exigiu as devidas indemnizações.
Desassoreados os leitos e encaminhadas as águas, tornava-se imperioso avançar para um plano de rega, a partir de uma barragem a construir no Freixial.
Todo este magnífico projecto estava a avançar a bom ritmo, quando se deu o 28 de Maio de 1926 e, passados 2 anos, a morte o arrebatou sem piedade, aos 40 anos, na plenitude das suas capacidades, e ninguém, depois dele, se empenhou, com afinco, em o concluir. Verdade se diga que, também deixou de haver vontade política e mesmo condições para o continuar.
Com o seu desaparecimento, conservaram-se os problemas e, a maior parte deles, até hoje.
Felizmente, podemos dizer que o HOSPITAL está quase concluído!
O caminho de ferro nunca mais se pensou nele.
A abertura do canal não se terminou e as máquinas foram abandonadas à voragem do tempo e da ferrugem…
E o Concelho de Loures não chegou a ser o que poderia ter sido.
Não quero deixar de falar do negócio das águas de Caneças.
Cartaz publicitário das águas de Caneças – nota – o selo de garantia tinha gravado o monograma de A. D. S. ( isto é inédito. Foi um negócio tratado a nível de empresa, com empregados para limpeza e captação, armazenamento e distribuição ao domicílio, como se pode verificar no cartaz. Nunca ninguém tinha falado neste empresário das águas de Caneças, que vendeu mais água do que todos os outros juntos e usava outros meios)
Observando o folheto, verificamos que comercializava, em grande escala, a água das Fontainhas e que este comércio é muito anterior à existência das fontes privadas. Destaco o pormenor da informação, que ia da garantia da boa qualidade, aos preços e à quantidade contida nas vasilhas, sem falar já no sentido de comércio que revela. Ficamos ainda a saber que tinha dois depósitos, um no Campo Grande e outro no Lumiar, donde partiam as camionetas para a distribuição ao domicílio, sem custos acrescidos. Este documento tão simples é de uma enorme valia para nós e foi para mim uma grande surpresa, como será, certamente, para a maioria dos leitores.
Informaram-me os familiares que esse negócio foi continuado por dois dos seus filhos e que só terá terminado quando a água das Fontainhas deixou de ser água potável.
Preços dos bilhetes das viagens – 1º Autocarro Turistico do País
Uma outra actividade comercial desenvolvida pelo Sr. Augusto Dias da Silva e que muito promoveu o concelho foram as viagens turísticas, em autocarro especialmente adquirido para esse fim. Caneças era um dos principais destinos, embora se realizassem para outros pontos da zona saloia – Montachique, Bucelas, Mafra, Ericeira, Santa Cruz, Praia das Maças, e ainda Cascais, Sintra, Colares, Boca do Inferno… e até Fátima, posteriormente.
Consta que foi o primeiro autocarro turístico a circular em Portugal.
Augusto Dias da Silva foi um dos homens que na 1.ª república mais reformas sociais propôs. São da sua iniciativa as seguintes:
Decreto N.º 5 636 – organiza o seguro social obrigatório na doença;
Decreto N.º 5 637 – Organiza o seguro social obrigatório nos desastres no trabalho;
Decreto N.º 5 633 – Organiza o seguro social obrigatório contra a invalidez, na velhice e de sobrevivência;
Decreto N.º 5 639 – organiza as bolsas sociais de trabalho;
Cartão de director do Sporting e Noticia referente ao seu falecimento.
Decreto N.º 5 640 – Organiza o Instituto de Seguros Sociais Obrigatório e de Previdência Geral.
Em meu entender, estão aqui as bases do que agora se designa por” estado social”, hoje em perigo de ruir, o que será um perigo, podendo lançar a sociedade em convulsões cujo fim desconhecemos.
Parece-me que basta esta legislação, de resultados sociais evidentes, para não ignorarmos as medidas de um ministro da República, que foi nosso autarca – Augusto Dias da Silva.
– Maria Máxima Vaz | Historiadora
Publicação original em 1998
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