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À meia-noite e vinte minutos do dia 25 de Abril de 1974, foi dado o sinal de confirmação de que a intentona dos Capitães de Abril estava em curso, através da passagem da canção “Grândola Vila Morena”, no programa “Limite” da Rádio Renascença, dando início a uma Revolução que ainda hoje é um caso de estudo e que derrubou o regime ditatorial começado em 1926 e instituído em 1933. Um ano após, em 1975, aconteceram as primeiras eleições livres para a Assembleia Constituinte. Dois anos a seguir, a 25 de Abril de 1976, dão-se as primeiras eleições para a Assembleia da República, que o Partido Socialista venceu. Mais tarde, também a 25 de Abril, mas de 1983, realizaram-se eleições para a Assembleia da República com nova vitória do PS por maioria simples, sendo que então, Mário Soares, constatando não ser possível governar em minoria, entrou em conversações com o PSD, de Mota Pinto, tendo daí resultado o chamado Governo do Bloco Central, que viria a tomar posse a 9 de Junho de 1983.
Facto é que Abril parece transportar os melhores momentos da nossa História, senão veja-se:
Em 1500, a 22 de Abril, Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil.
Em 1709, a 20 de Abril, Bartolomeu de Gusmão ensaiou no Terreiro do Paço em Lisboa o seu aeróstato.
Em 1821, a 22 de Abril, foi abolida a Inquisição em Portugal;
Em 1867, a 24 de Abril, há 152 anos, o rei D. Luís decretou a abolição da pena de morte, tornando Portugal no primeiro grande Estado europeu a fazê-lo;
Em 1970, a 22 de Abril, os deputados Francisco Sá Carneiro e Francisco Pinto Balsemão, membros da Ala Liberal, apresentaram na Assembleia Nacional um projecto de Lei de Imprensa que previa o fim da censura prévia.
Consensual será afirmar que muitos de nós, mesmo os saudosistas do tempo da “Outra Senhora”, não reconheceríamos Portugal se voltássemos a 24 de Abril de 1974.
A liberdade de expressão estava completamente barrada pela censura. A actividade política, associativa e sindical era quase nula e controlada pela polícia política. Sim, tínhamos polícia política, a malfadada PIDE, que garantia que houvesse quem estivesse preso por delito de opinião. A oposição ao regime autoritário de Salazar e depois de Marcelo Caetano, era perseguida e tinha de agir na clandestinidade ou refugiar-se no exílio. Não existiam eleições livres e a única organização política aceite era a União Nacional. Os direitos de Cidadania eram constantemente esquecidos pelo Estado. Estávamos em várias frentes numa anacrónica guerra colonial. Portugal encontrava-se praticamente isolado da comunidade internacional.
Só a título de exemplo importa recordar que em Portugal, antes do 25 de Abril de 1974, as escolas tinham salas e recreios separados para rapazes e raparigas, muitos discos e livros estavam proibidos, existiam nas Rádios listas de músicas que não se podiam passar, havia bens de consumo que não se podiam importar, não se podia sair livremente do país, as mulheres eram subalternas dos homens, primeiro dos pais e depois dos maridos.
Um estado moralista que amiúde roçava o ridículo nessa missão que assumia na educação das massas.
Até 1974, apenas 25% das mulheres trabalhavam, mas ganhavam menos cerca de 40% do que os homens. Era permitido aos maridos proibir a mulher de trabalhar fora de casa, podendo este rescindir contratos firmados sem o seu consentimento. Às mulheres era vedado o acesso à magistratura, às carreiras diplomática, militar e de polícia. Para aceder a outras profissões, como a de enfermeira e a de hospedeira, as mulheres perdiam o direito de casar, entre outros. O Código Civil garantia aos maridos a possibilidade de repudiar as mulheres no caso de não serem virgens na altura do casamento.
Este mesmo Código determinava que “pertence à mulher durante a vida em comum, o governo doméstico”. As mulheres tinham legalmente o domicílio do marido e eram obrigadas a residir com ele. Os maridos tinham o direito de abrir a correspondência da mulher. O Código Penal permitia aos maridos matarem as suas mulheres em caso de flagrante adultério. Até 1969, as mulheres não podiam viajar para o estrangeiro sem autorização do marido. Às mulheres era vedada a possibilidade de tomarem contraceptivos contra a vontade dos seus maridos. Aliás, a publicidade dos contraceptivos era proibida. As mães solteiras não tinham qualquer protecção legal. As mulheres apenas podiam votar para as Juntas de Freguesia no caso de serem chefes de família (se fossem viúvas, por exemplo), tendo – mesmo assim – de apresentar atestado de idoneidade moral. O regime de previdência e de assistência social caracterizava-se pela insuficiente expansão, fraca cobertura de riscos e prestações sociais com baixo nível de protecção social. Pouco antes do 25 de Abril, o número de portugueses a receber pensão era cerca de 525 mil. Não existia subsídio de desemprego e o abono de família e de aleitação atingiam valores irrisórios.
Podíamos ainda recordar que antes de 1974, só 47,0% das casas tinham água canalizada, sendo que actualmente a cobertura é de 97%. Antes de 1974, só 58,0% das casas tinham saneamento básico, contudo hoje a cobertura é de 97%. Antes da Revolução só 63,0% das casas tinham electricidade, porém hoje 99,6% das casas dispõem de electricidade. A taxa de mortalidade infantil passou de 37,9% em 1974 para 5% na actualidade.
Com a Revolução dos Cravos fixou-se o salário mínimo nacional, surgiu o Serviço Nacional de Saúde. Em 1974, trocámos a religião oficial pela liberdade religiosa, trocámos uma guerra colonial e o serviço militar obrigatório pelo direito à objecção de consciência e trocámos o medo pela esperança.
Em 1974, 25% dos portugueses eram analfabetos, hoje menos de 5% não sabem ler nem escrever. Não admira, a escola do salazarismo era obcecada pela defesa da máxima “Deus, Pátria, Família”. A instrução era de 3 anos para as raparigas e de 4 para os rapazes, e visava tão-somente que se aprendesse a ler, escrever e contar. Só os privilegiados é que tinham acesso aos outros graus de ensino e a universidade era para uma pequena elite essencialmente masculina que se auto-reproduzia.
A visão dos governantes acerca da educação, dividia a população escolar nas seguintes percentagens: 8% eram “ineducáveis”, não se podia fazer nada por eles; 15% eram “normais estúpidos”, o que obrigava a muito trabalho para conseguir deles alguma coisa de vez em quando; 60% dos portugueses tinham inteligência média e só 2% é que eram “notáveis”… Portanto, à partida, 23% dos alunos eram para pôr fora do sistema o mais depressa possível!
No tempo da “Outra Senhora”, enquanto os Cofres engordavam com ouro – algum nazi – a pobreza grassava e a expectativa de progressão social era uma miragem para a maioria esmagadora da população.
Muito mais se poderia dizer…
Facto é que a Revolução dos Cravos, enchendo as almas de uns e os espíritos de outros, de uma qualquer visão ascética a que alguns chamarão de alma lusitana, teve momentos que foram transcendentes, quiçá algo metafísicos, onde surgiram portugueses que honraram e honram os nossos egrégios avós, pois na presença do que é errado optaram e optam por escolher o lado mais difícil, mais arriscado, mas contudo o lado certo da História. Assim fez, Salgueiro Maia a quem teimamos não dar o devido crédito, mesmo sabendo que este nunca procurou protagonismos, nem dividendos pela sua acção. Assim fez, o então Alferes Miliciano Fernando Sottomayor, ao não obedecer às ordens para disparar sobre Salgueiro Maia e as suas tropas, o que resultou na imediata ordem de prisão daquele. Sendo que quando voltaram a ordenar aos soldados que disparassem, eles sucessivamente se recusaram também a disparar. E tal, foi determinante pois viabilizou o golpe.
Homens de fibra! Homens com “H”! Homens que em todos os tempos e mesmo em democracia têm de sair a terreiro e garantir que o bem-comum, esse bem-maior, é prosseguido. Importa que aqueles que celebram Abril, em particular aqueles que governam, não o façam para cumprir um ritual sacralizado. Celebrem Abril sentindo o apelo e a força da recusa daqueles soldados, que disseram “Não!”.
Hoje, impõe-se que quem governa a coisa pública saiba dizer “Não!” àqueles que, por influência, procuram oprimir os cidadãos, retirando-lhes o que lhes é devido.
Durante as celebrações do 41.º Aniversário do 25 de Abril de 1974, na única intervenção que não foi discurso de circunstância, o antigo Presidente da República, General Ramalho Eanes, recordou-nos de forma superior o que é a democracia. Referia então, e eu concordo, que a democracia é a crise, é a dialéctica, o diálogo, a negociação, é a luta democrática. A democracia não é sinónimo de consenso, contudo deve ser entendida como um processo que a tal pode e deve levar, sendo que quando alcançado não deve ser rejeitado.
Assim, impõe-se indagar:
Temo-nos envolvido no processo de governação? Seja do país, seja do nosso concelho, seja da nossa freguesia?
Acompanhamos a acção governativa nos mais diversos níveis?
Apresentamos ideias e soluções aos nossos decisores?
Temos honrado Abril?
Será bom que interiorizemos que não se pode fazer do 25 de Abril uma espécie de “Sabat” e nos restantes dias contribuir para o seu contrário.
A democracia conquistada realizar-se-á sempre que aqueles, qual Alferes Sottomayor, surgem e dizem “Não!”.
E isso é Liberdade, isso é cidadania que Abril nos conferiu e quem por ele lutou nos delegou.
O nosso fado de Abril faz-nos saber que o status quo não é duradouro e que “O Sonho Comanda a Vida”!
– Paulo Bernardo e Sousa, Politólogo