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A Várzea que se estende da foz do rio Trancão até ao limite sudoeste do concelho de Odivelas, tal como hoje existe, é o resultado de um longo processo de formação.
Afirma o Professor Orlando Ribeiro que é a maior depressão da península de Lisboa e que se afundou no período quaternário.
Para uma visão abrangente desta depressão, teremos de subir a encosta monoclinal que, de sueste a sudoeste a limita e separa dos planaltos setentrionais da cidade de Lisboa.
Num passado recente toda esta baixa foi dos solos agrícolas mais produtivos do nosso País, justamente considerada a horta da capital. Mas, antes da agricultura, houve aqui outras actividades: a pesca, a salicultura, a navegação…..
São vários os autores que se referem à formação e vida nesta várzea. Seguindo cronologicamente as informações desses autores, poderemos ter uma ideia aproximada da sua evolução.
Silva Teles refere-se-lhe nos termos seguintes:
Porto de Lisboa
“As baixas de Loures têm uma atracção especial(…)Em tempos distantes, (…) o Tejo prolongava-se até muito longe para Oeste. Essas baixas eram então um golfo, com uma saída muito estreita. À medida que se iam erguendo as faixas acolinadas do norte e do oeste e prosseguia a sedimentação, a bacia primitiva emergia a pouco e pouco, transformando-se primeiramente em lago, depois em pântanos. (…) Dos pontos altos da Ameixoeira e Apelação colhe-se em flagrante a depressão inteira, em contraste absoluto com as terras altas que se encontram em volta”.
E o Professor Orlando, de saudosa memória, completa da seguinte forma: “Depois, os aluviões foram colmatando os vales, elevando o leito e tolhendo o caminho às águas salgadas. Mas, na Idade Média ainda havia salinas em Santo Antão do Tojal, e conservaram-se restos das que, há poucas dezenas de anos, se exploravam à entrada da garganta de Sacavém”.
Como se pode inferir daqui, um dos factores de transformação do golfo inicial em terrenos pantanosos, foram os aluviões que aqui se acumularam ao longo dos tempos, embora os esteiros do Tejo continuassem a “alongar-se até muito longe”, esteiros que permitiam a navegação, para transporte de pessoas e bens.
João Brandão (de Buarcos), no livro a que deu o título – Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552 – afirma que “aqui “corriam” e “serviam”, nada menos do que 150 batéis, o que lhe fora confirmado por pessoas que “bem o sabiam”.
Cerca de meio século depois, a navegação mantinha-se activa, como nos revela o Chantre da Sé de Évora, Manuel Severim de Faria, no seu livro – Viagens em Portugal.
Na sua segunda viagem pelo país, realizada em 1609, de Évora a Miranda do Douro, passou por aqui, e dessa passagem deixou o seguinte testemunho:
“De Lisboa a Sacavém há duas léguas. Sacavém é um lugar de 100 vizinhos, edificado na comodidade de um braço do Tejo, que pela terra dentro entra duas léguas até Loures. É este esteiro, quando desemboca no Tejo, de grande fundo; tanto que nele entram navios de muitas toneladas, e alguns galeões da carreira da Índia; a largueza não é muita e se passa este estreito por uma barca que é estanque do Duque de Bragança, herdado do Conde Nuno Álvares, a quem a deu El-Rei D. João primeiro e lhe rende seiscentos cruzados. O rio se vai estreitando pela terra dentro para a parte do Poente sempre em altura que navegam barcos e de uma parte e da outra da ribeira
está cercada de quintas fresquíssimas, e de muitas marinhas. A última parte deste rio dista pouco do de Alcântara, e rompendo uns vales que entre eles correm, se poderão comunicar sem muita dificuldade, como o considerou excelentemente Luís Mendes de Vasconcelos”.
As afirmações deste autor merecem todo o nosso crédito, uma vez que descreve o que observou, e como muito bem dizia Duarte Pacheco Pereira, “todo o saber é de experiência feito”.
Das suas últimas palavras depreende-se que aprovava o projecto apresentado por Luís Mendes de Vasconcelos no livro intitulado – Do Sítio de Lisboa- e publicado em 1608, ou seja, um ano antes da viagem do Chantre da Se´de Évora.
Fazer comunicar o rio de Sacavém com o de Alcântara, parece possível e conveniente a ambos. Mas vejamos o que diz Luís Mendes de Vasconcelos, Grão-Mestre da Ordem de Malta:
Nós temos o rio de Sacavém que desembocando no Tejo faz uma profundíssima foz, na qual entram os maiores navios deste porto, e ficando quase no norte da cidade, volta contra o noroeste, navegando-se até à Mealhada; e da sua ribeira se levantam uns montes ásperos, ainda que pela cultivação deleitosos, os quais se vão estendendo com uma larga volta contra o poente, levando sempre ao pé um fundo vale, aberto por muitas partes com regatos que por ele correm. Deste modo vão fazendo um muro a esta cidade até onde o rio de Alcântara, continuando a mesma volta por um áspero vale, chega a se meter no Tejo ao poente da cidade, deixando-a cercada com um grande espaço do seu território este rio, o de Sacavém, e o vale que está entre eles. Se abrirmos este vale, de onde a maré do rio de Sacavém chega,, até ao de Alcântara, e afundarmos este de modo que possa a maré entrar nele, não vos parece que faríamos a mais segura fortificação que pode ser, recolhendo dentro dela, não só a cidade, mas muitos lugares e fertilíssimo terreno cheio de quintas,
jardins, hortas e deleitosas recreações ?(…)”.
E remata mais adiante: “… ficamos assim não só fazendo esta cidade fortíssima, mas por razão desta fortificação se povoará muito mais, de sorte que em pouco tempo virá a ser cidade todo este circuito, com o que ficará sendo a mais poderosa do mundo”.
Este era o projecto de Luís Mendes de Vasconcelos – fortificar Lisboa com uma “muralha de água”, incluir dentro dela toda a várzea e torná-la a cidade mais poderosa do mundo!! Engenhoso, mas não convenceu o rei Filipe I, porque não tinha intenção de gastar dinheiro em projectos portugueses.
Estudos mais recentes têm considerado o cismo de 1755 um factor importante para o assoreamento da várzea.
Já depois do cismo, continua a falar-se de portos e de navios por aqui. Em 1762 o padre João Baptista de Castro descreve assim a região:
“… aqui desagua este rio no Tejo por uma grande boca, fazendo uma profundíssima foz, na qual podem entrar os maiores navios deste porto; e ficando quase ao norte da cidade, volta contra noroeste, onde se encontram os vistosos portos de Unhos, Frielas, Mealhada, Granja, Marnotas, Santo Antão do Tojal, etc.”.
Sabemos que a água não desapareceu da lezíria a ponto de desaparecerem os barcos, pelo menos até 1822, segundo afirmação do Padre Álvaro Proença, em – Subsídios para a História do Concelho de Loures”, que diz o seguinte:
“De 1820 a 1822 as lajes da igreja que eram de pedra tosca foram substituídas por um soalho cuja madeira desembarcou então na Póvoa de Santo Adrião e daí veio em carros para Loures”.
As águas só foram verdadeiramente escoadas com as obras de drenagem terminadas em 1939. O Padre Álvaro Proença, pároco de Loures, deve ter assistido a essas obras e, em 1940, quando escreveu o livro a que acima me referi, diz assim: “… a água terrível tudo destruía… Tornava-se urgente acabar com a fúria das águas, canalizar o seu ímpeto terrível e essa obra necessária terminou em 1939. Cavaram-se leitos profundos para a água, encaminharam-na para Sacavém, indicaram-lhe o caminho do Tejo. Hoje, a água ainda faz partidas…”
Oh! Se faz!! Todos nos recordamos do que aconteceu em 1967. É legítimo questionarmo-nos:
Haverá a possibilidade de mais “partidas”, para usar o termo do Padre Proença?
Não sou Geóloga nem Geógrafa, mas gostaria de falar desta questão com o conhecimento que não tenho.
Contudo, admito a possibilidade de algumas surpresas, considerando que toda esta baixa não ultrapassa os 20 metros de altitude, o que não será barreira suficiente para impedir a entrada de água na pior das hipóteses, sem deixarmos, por outro lado, de considerar que fica a uma cota inferior à dos terrenos que a cercam.
A água que sempre aqui causou danos, também criou riqueza, trazendo o sal, facultando o transporte, como se comprova pelos testemunhos que apresentei e ainda por se ter constatado a existência de cais em Bucelas, Abelheira, Santo Antão, Loures, Mealhada, Unhos, Apelação, Frielas, Santo Elói, Paiã, Porto Pinheiro.
Maria Máxima Vaz ________
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