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Como é sabido a República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa. Assim reza o art.º 2.º da nossa Constituição.
Trocado por miúdos e no que ao tema de hoje importa, em Portugal a organização política democrática assenta em dois pilares, (1) na democracia representativa, em que os cidadãos escolhem os seus representantes e (2) na democracia participativa, em que esses mesmos cidadãos contribuem para a decisão política.
Muitos são os instrumentos de participação, desde o lobby – algo não assumido nem juridicamente mui consentido por terras lusas – à Petição, passando pela audição popular e pela consulta pública, culminando no exercício do direito à objecção de consciência exercido seja pela desobediência civil não violenta, seja pelo direito de manifestação não violento. Tal exercício pode ainda suportar-se num conjunto de outros direitos, como a participação em projectos que vão surgindo como os Orçamentos Participativos e mais recentemente se viu com o inicio dos trabalhos do Conselho de Cidadãos, em Lisboa, projecto estimulado pelo novo edil da capital, o Eng.º Carlos Moedas, muito na senda de projectos como o “Parlamento dos Jovens” e dos Conselhos Municipais temáticos (Juventude, Educação, Saúde, etc.).
Nesta perspectiva verifica-se que sempre que importa agir em defesa de um bem colectivo existente ou vindouro e o sistema presente é incapaz de o fazer, surgem movimentos que procuram sufragar tal desiderato. Assim, pode-se afirmar que a democracia representativa é tanto mais forte quanto for capaz de evitar a necessidade de surgimento de movimentos que recordem aos representantes o que é necessário. Por outro lado, a democracia participativa tende a reforçar-se em momentos de apatia dos representantes políticos com capacidade de agir.
Facto é que nos últimos tempos temos assistido a visíveis e ruidosos exercícios de democracia participativa e tal só acontece porque os representantes eleitos com condições de agir não o fazem, fazem mal ou deliberadamente agem contra os representados que se vêm obrigados a agir, a participar activamente.
Recordar-nos-emos do surgimento nas redes sociais do caso da pequena Matilde que tendo nascido com atrofia muscular espinhal, uma doença paralisante, tal como em muitos e demasiados outros casos, impôs aos seus pais a condição de pedintes, pois o serviço nacional de saúde não apontou soluções nem caminhos, parecendo ser gerido por representantes incapazes de empatizar e por tal serem humanos para com o sofrimento daquela pequena portuguesa e seus pais. Assim, rapidamente a sociedade civil se juntou e procurou os recursos necessários para o tratamento devido à Matilde. Como disse, demasiadas Matildes têm existido, pois não é a primeira vez que vimos isto. Não se percebe esta apatia das entidades públicas numa altura em que os recursos dos contribuintes são usados para tapar buracos gerados por maus gestores e pela mão da corrupção, ou se direcciona para o reforço das capacidades militares e militaristas, ao invés de serem usados precisamente para sufragar as necessidades dos cidadãos, dos contribuintes. E assim, o Estado Social apaga-se, desvanece-se e é substituído pela caridade que por natureza tende a não socorrer todas as necessidades.
Verificamos ainda que a ousadia de alguns representantes chega ao ponto de quando substituídos pelos representados ainda se dignam deitar a mão aos recursos recolhidos, como sucedeu com as dádivas dos portugueses na sequência das calamidades dos fogos no centro do país, há uns anos atrás.
Precisamente, porque os representantes, i.e., os Governantes nacionais e locais pretenderam e vão alterar a vida a mais de meio milhão de cidadãos, que residem a Norte do Campo Grande, surgiu o Movimento de Cidadãos Contra o Fim da Linha Amarela, que deitou a mão a todos os instrumentos disponíveis para evitar que a entrada em funcionamento da linha verde circular do metro remeta a linha amarela do metro para um mero trajecto entre Odivelas e Telheiras, fazendo do metro uma espécie de Ascensor da Calçada de Carriche. Tal trará incómodos e atrasos, quer pelos transbordos em massa que sucederão no Campo Grande, quer pela espera em duas linhas por comboios quando actualmente todo o acesso ao centro de Lisboa é feito sem interrupções nem transbordos. No trabalho desenvolvido, aquele Movimento contou com o apoio popular, mas também como o apoio peculiar do Bloco de Esquerda, do CDS/PP, do PAN, do PCP e do PEV e ainda do PPD/PSD, num claro encontro entre a democracia participativa e a democracia representativa. Passado este tempo de acção, pode-se afirmar que em Odivelas surgiu uma nova forma de Movimento Social, um autêntico caso de estudo, que tendo sido apelidado de “ruído”, afinal foi simplesmente mais um exercício de um conceito que abraçamos em Abril de 1974, o exercício de cidadania em “Democracia”.
Para muitos que se admiram com os níveis de abstenção e de alienação cívica, mas que no seu íntimo reduzem o exercício da cidadania em democracia a uma espécie de Shabat de 4 em 4 anos, pode parecer estranho que tendo Portugal uma forte presença dos partidos políticos no espaço político e decisório público, pretendam os cidadãos ser isso mesmo cidadãos. Facto é que o legislador constituinte e ordinário optou por exortar à operacionalização da democracia em sistema misto, pois apesar de a estrutura do Estado se ter constituído com base na representatividade, também tal depende da participação.
Por outro lado, mecanismos de participação como o do orçamento participativo municipal tem sido pervertidos e até desacreditados. Isto está a acontecer, aqui mesmo, em Odivelas, onde os projectos resultantes do contributo dos cidadãos para o Orçamento Participativo são atirados reiteradamente para as calendas do esquecimento.
Neste quadro, o exercício da cidadania seja local, seja nacional, pela via da participação directa tem de ser observado como oportunidade de recolha de contributos visando melhorar o exercício dos órgãos de Poder, que assim até se podem valorizar politicamente perante o eleitorado.
A participação popular em concelhos como o de Odivelas, onde a conjuntura política dotou quer a Câmara Municipal, quer a Assembleia Municipal de soluções monocromáticas maioritárias, fazendo da função deliberativa e fiscalizadora uma espécie de caixa de ressonância da função executiva, impõe mesmo a participação dos cidadãos, pois as oposições estão de tal forma diminuídas que mesmo fazendo o seu trabalho o sucesso destes dependerá da capacidade de quem governa em ser magnânimo.
Hoje governar não é um mero exercício de decidir e executar, antes de tudo deve ser um exercício de perscrutar.
Paulo Bernardo e Sousa
Politólogo