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A recente iniciativa de Carlos Moedas de, instituir, em Lisboa o Conselho da Cidade como forma de envolver os cidadãos na administração da “rés-publica”, sob a capa de uma inovação, pode, afinal, não passar da recuperação de uma solução com barbas, longas.
Chamar o povo aos assuntos da comunidade local remonta à introdução, na península ibérica, pelos visigodos, do “Conventus Publicus Vicinorum”, uma assembleia de vizinhos reunida em lugar público, habitualmente num ponto central da povoação, a fim de se dirimirem questões colectivas, sendo acolhido no ”Liber Ludiciorum”, o código legislativo do império visigótico, promulgado pelo Rei Recesvinto, em 654. De resto, quando a historiografia escolástica pretende retroagir até ao momento fundacional do municipalismo, em Portugal, estão mais inclinados a escorar essa apologia no império visigótico, em detrimento da influência romana. E eu subscrevo.
Deixando para traz a velha questão de ter inexistido verdadeiro Poder Local antes da Constituição da República Portuguesa de 1976, para o assunto em pauta, releva a Lei 79/77 de 25 de Outubro, que consagrou o primeiro regime jurídico do Poder Local democrático, e especificamente o Artº 68º o qual impunha que em cada município existisse um órgão, não representativo, designado “Conselho Municipal”, de natureza consultiva, e de composição variável, por convite, das forças vivas do município. A ideia era também envolver cidadãos outras forças da comunidade na gestão da autarquia, para além dos eleitos representativos.
A ideia do legislador ordinário até podia ter os seus méritos, a verdade é que na prática não gerou entusiasmo, e foi com naturalidade que cinco anos depois o regime jurídico das Autarquias locais, vertido na Lei 100/84, de 29 de Março, concretamente no seu Artº 56º, prescrevia que a Assembleia Municipal podia instituir um Conselho municipal, mantendo o caracter consultivo. Ora se quando era obrigatório não teve ganho de causa, agora, sendo facultativo, foi a “morte” definitiva deste Conselho Municipal, visto que quase nenhuma autarquia o instituiu, e isso assumiu letra de Lei com o regime jurídico das autarquias locais, vertido nos diplomas 159/99 (que caracterizava as atribuições das autarquias locais), complementado pelo 169/99 (que caracterizava as competências dos órgãos). Aparentemente os órgãos representativos das autarquias (executivos e deliberativos) quiseram todo o protagonismo para si próprios. Bem prega Frei Tomás dirão … .
A minha experiência pessoal constatou que havia, em Portugal insular, uma prática “sui generis” que dava corpo a este envolvimento das populações, mais concretamente na Região Autónoma da Madeira, e por recurso a uma rede espalhada por toda ilha da maior importância – as Igrejas, protagonizada pelo incontornável Alberto João Jardim, e que se resumia ao seguinte: aproveitando a enorme religiosidade do povo madeirense, o governante deslocava-se ás igrejas de cada freguesia, e aguardava pacientemente o final do serviço religioso, e quando o povo saía da missa, aglomerava-se em torno do governante, que logo ali instava as pessoas a dizer que obras pretendiam ver realizadas. O governante ouvia, os assessores anotavam em bloco notas, e no final anunciava as obras possíveis para a freguesia, e as que não se mostrassem exequíveis prometia ir estudá-las para no futuro as concretizar. E cumpria sempre. Essa prática foi entrando em desuso nos últimos mandatos de Alberto João Jardim, passando para a reserva das reuniões com os Presidentes das câmaras, onde AJJ levava todo o seu governo para ouvir e registar as pretensões dos seus Presidentes de Câmara. Assisti a várias. Vi e ouvi muita coisa, que naturalmente guardo para mim.
Em 1997, ano em que fui candidato à presidência da junta de Freguesia de Famões, tive o privilégio, num congresso de municipalidades ibero-americanas, onde representava a minha universidade, de conhecer e ficar amigo de um Deputado Estadual do Rio grande do Sul, do PMDB, que me desafiou a conhecer a sua terra. Aproveitei a viagem para estudar o sistema municipal brasileiro cuja matéria haveria de incluir na minha obra, publicada em 2007, “O Municipalismo em Portugal, Brasil e Cabo Verde”.
Nesse mesmo ano, 1997, eu e dois colegas da universidade, fomos recebidos por várias autoridades do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil, e na Prefeitura de Porto Alegre, na época governada pelo PT (petezão como lhe chamavam) fomos obsequiados com uma novidade – O Orçamento Participativo (OP), como forma de envolver os cidadãos no governo da cidade, numa demorada sessão explanatória. O OP foi colher influências de práticas oriundas do Canadá, tendo sido lançado, pela primeira vez no Brasil, em 1989, precisamente em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Disso, haveria de dar nota, quando regressado a Odivelas, num artigo onde dei nota da minha experiência brasileira, pelo que aqui na nossa terra terá sido a primeira vez que ouviram falar do OP, embora no nosso país pessoas como o sociólogo Boaventura dos Santos e o politico Francisco Louçã fossem, segundo os nossos amigos brasileiros, interlocutores habituais, e portanto a par da matéria obviamente.
No ano seguinte, em 1998, Palmela, haveria de ser o primeiro município português a acolher este instrumento de participação popular, e foi em Palmela que, em 2007, participei no I Encontro de Orçamento Participativo em Portugal, havendo na época cerca de duas dezenas de autarquias aderentes ao OP, tendo até realizado diligências para levar a ideia para a Madeira, onde profissionalmente me encontrava a trabalhar.
De então para cá várias outras autarquias aderiram ao OP, como aconteceu com Lisboa em 2008, no que foi a primeira capital europeia a fazê-lo, em 2009 foi a vez de Odivelas, e o governo português, ficando para a história como o primeiro governo europeu a fazê-lo, em 2017.
Assim o histórico de iniciativas tendentes a envolver o povo, em práticas cidadãs, é longo e diverso, independentemente do título que se lhe dá: Conventus Publicus Vicinorum, Conselho Municipal, auscultação no átrio da igreja, Orçamento participativo, ou Conselho da Cidade, aparentemente é uma ideia interessante, mas não pode, como parece ser o caso actual de Lisboa, servir para ignorar órgãos constitucionais representativos, como é o caso das Assembleias Municipais ou de Freguesia, até porque estes órgãos têm um enorme potencial que ainda não foi explorado.
– Oliveira Dias, Politólogo