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As questões volvidas à segurança interna têm dimensão constitucional, integrando estas os pilares indispensáveis ao exercício da democracia e à configuração do Estado de Direito (vide o n.º 1 do artigo 27.º – Direito à liberdade e à segurança, da CRP). A doutrina, de forma mais ou menos unânime assinala que assim estão garantidos em simultâneo o direito à liberdade e o direito à segurança, que por esta via estabelecem uma correlação íntima, desde as constituições liberais. É usual considerar-se que a Constituição ora nos remete para a sua dimensão ‘negativa’, associada ao direito à liberdade, firme num direito subjectivo à segurança (direito de defesa perante agressões dos poderes públicos), ora para sua dimensão ‘positiva’, objectivada no direito à protecção dos poderes públicos contra as agressões ou ameaças de outrem.
Impôs o legislador ao Governo a obrigatoriedade de apresentar à Assembleia da República um relatório, até 31 de Março, sobre a situação do País no que toca à segurança interna, bem como sobre a actividade das forças e dos serviços de segurança desenvolvida no ano anterior, que depois é objecto de apreciação pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias visando a emissão de relatório e parecer, para posterior apreciação em sede plenária (vide n.º 3, do artigo 7.º, da Lei de Segurança Interna).
Como se percebe, o Relatório Anual de Segurança Interna, surgiu como instrumento de gestão e planeamento sustentado em dados estatísticos, que visam demonstrar a evolução do quadro criminal.
De acordo com a Lei de Segurança Interna as forças e serviços de segurança envolvidos na elaboração do RASI são somente 7 (PJ, GNR, PSP, SEF, SIS, Autoridade Marítima Nacional e Autoridade Aeronáutica), contudo são 15 os órgãos de polícia criminal conforme consta da Lei de Organização dos Órgãos de Polícia Criminal (além dos mencionados temos a Polícia Marítima, ASAE, CMVM, IGAMAOT, IGAC, ACT, Autoridade Tributária, IGSS, Autoridade Aduaneira, Guardas Florestais – Madeira, dos Açores e Lisboa). Verifica-se aqui a primeira lacuna neste processo de recolha de informação, pois relega dados de 10 órgãos de polícia criminal.
Qualquer relatório estatístico com actualizações periódicas (anuais, no caso do RASI) deve ser planeado para que a metodologia aplicada, seja de pendor quantitativo, seja qualitativo use indicadores seguros que permitam a comparação de registos, ou se quisermos, a evolução destes. Considerando esta premissa, o Conselho Superior de Estatística (CSE), órgão do Instituto Nacional de Estatística (INE), aprovou em 1997 a primeira “Tabela de Crimes Registados”, que passou a ser de utilização obrigatória para as entidades do Sistema Estatístico Nacional (SEN). Contudo, neste caso tem predominado instabilidade nos indicadores, pois a Tabela de Crimes Registados que serve de base ao RASI, desde 1998 em diante foi alterada 7 vezes.
O primeiro RASI foi publicado em 2000, reportando-se à realidade de 1999. Daí em diante todos os anos saiu, mais ou menos a horas a edição referente ao ano anterior.
Vários são os sintomas que demonstram que o RASI cedo se transformou num instrumento de propaganda política, ao invés de procurar ser um repositório estatístico sério e um documento que vise o planeamento. Afirma-se tal na constante e abundante irregularidade na apresentação de dados. Facto é que não são poucos os exemplos de registos de tipos de crimes que surgem nuns RASI e são esquecidos noutros, inibindo assim um continuum comparativo quer da criminalidade, quer da eficiência das forças de segurança (ex.: RASI 2021).
Não obstante, a origem de dados não ter a amplitude desejável e estar subordinada a um classificador instável, verifica-se que os dados escolhidos para os RASI não são fiáveis, pois tornou-se comum verificarem-se “correcções de dados” nas comparações com os anos, sem que qualquer explicação seja dada. Os casos mais flagrantes, surgem nas contagens de mortos em acidentes de viação onde o milagre da ressurreição pelos vistos é possível, sendo frequente num ano dizer-se que morreram um número “x” de portugueses em acidentes de viação e no RASI do ano seguinte, quando se fala do número de mortes do ano anterior, afinal morreram menos (“x-n”). Em que ficamos?
Importaria incrementar o conhecimento daquilo que é a criminalidade que mais directamente influi com o sentimento de segurança das pessoas e que tal beneficiasse de maior rigor e disponibilidade de dados.
Ainda assim fica aqui a resenha possível das 338 páginas do RASI de 2021:
A criminalidade geral registou um crescimento de cerca de 0,8% face ao ano anterior. Os “Crimes previstos em Legislação Especial Avulsa” subiram 11,5%, os “Crimes contra a Paz e Humanidade” subiram em cerca de 2,6%, os “Crimes contra as Pessoas” subiram quase 0,9%, enquanto os “Crimes contra a Vida em Sociedade” em termos relativos mantiveram o ocorrido no ano anterior, tendo só subido em 6 casos, os “Crimes contra o Estado”, registaram um decréscimo de cerca de 0,8% e os “Crimes contra o Património” registaram a maior redução, 0,9% em relação a 2020.
Apesar do alarde social que causa e da cada vez maior presença de Crimes contra as Pessoas nos media, o que intensifica a noção de escala e de dimensão, o facto é que os crimes contra as pessoas subiram quase 0,9% desde o ano anterior. A taxa de incidência desta tipologia de Crimes desde que há registo (1999) sofreu uma redução de 3,3%.
O que não se vê nestes números são os números por tipo de crime, propriamente ditos, sendo que daqueles poucos que aparecem no RASI de 2021 é possível verificar que Portugal não é mesmo um país de brandos costumes, senão veja-se o que aconteceu de 2020 para 2021, nos seguintes crimes:
- “Crimes de Ofensa à Integridade Física Voluntária Simples”: +3%;
- “Crimes de Ofensa à Integridade Física Voluntária Grave”: +8,4%
- “Crimes de Ameaça e Coacção”: + 3,1%
- “Crimes de Violação”: +20,7% / +82 violações
- “Furtos em Veículo Motorizado”: +5,8%
- “Roubos de Viaturas”: +12,4%
- “Crimes de Extorsão”: +16,3%
- “Crimes de Burla Informática e nas Comunicações”: +7,1% / +1519 burlas
- “Crimes de Condução de Veículo com Taxa de Álcool Igual ou Superior a 1,2g/l”: +11% / +1697 casos
- “Crimes de Ofensas Sexuais em Ambiente Escolar”: +25,7%
- “Crimes de Tráfico de Estupefacientes”: +11,5%
- “Crimes de Condução sem Habilitação Legal”: +11,1%
- “Crimes de Abuso de Confiança Fiscal”: +32,3%
A Criminalidade Violenta não deixa de ser relevante face ao facto de esta implicar coacção e violência física directa. A criminalidade violenta mantem a trajectória descendente.
Apesar do registos de Crimes de Violência Doméstica só surgirem nos RASI desde 2003, verifica-se que a partir de 2011 estes surgem registados em 3 sub-classes. Não obstante, como noutros crimes, tal acontece intermitentemente. A atípica redução em 4,1% do registo deste tipo de criminalidade teria de ter encontrado explicações no RASI de 2021, mas assim não sucedeu.
Verifica-se a impossibilidade de com rigor conhecer a situação de segurança do país através dos RASI, sendo que os constrangimentos encontrados no documento criado para evidenciar as questões volvidas à segurança tem de necessariamente induzir-nos à possibilidade de o Relatório Anual de Segurança Interna estar a ser objecto de Instrumentalização e Propaganda Política, pois constata-se:
- Grande apreço pelo branqueamento de resultados, seja pela fraca amplitude, seja pela falta de rigor;
- A ausência de perspectiva gestionária;
- A ausência de estratégia política de médio e longo prazo;
- A natural cedência ao Populismo, pela imediatização e mediatização da decisão.
Assim, não vamos lá!
- Paulo Bernardo e Sousa
Politólogo