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No âmbito da reforma do Estado muito se tem falado no reforço da acção do poder local. Em diversas ocasiões, António Costa tem referido que há uma reforma do poder local a cumprir. Tendo em vista tal desígnio falou-se e pretendeu-se agendar a aprovação dos quadros legais necessários quer à eleição directa dos Presidentes das Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto, quer à eleição dos órgãos directivos das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional pelos Municípios das respectivas áreas. Por outro lado, o processo de reforço das competências dos Municípios iniciou o seu caminho. Um pouco aos solavancos, com a não aceitação de grande parte dos Municípios da transferência de algumas ou mesmo de todas competências em causa. Tal, tem-se revelado complicado porque se por um lado amiúde se reconhecem a capacidade das autarquias em gerir, por outro a discussão ora giza o pacote financeiro que não se parece adequar, ora gizam as desigualdades territoriais que a descentralização de algumas competências poderão vir a acentuar.
Daquele passado recente, de má memória, em que tudo se fazia para satisfazer os credores, recorda-se ainda o Livro Verde ou a Reforma Administrativa de José Relvas, que de estrutural nada tinha, sendo que mais não visou do que satisfazer o requisito de redução de órgãos do poder local imposto pela troika, tendo-se traduzido na redução do número de freguesias, sob critérios tão obtusos que nem sequer me quedarei a analisar.
Mas afinal para que servem as Autarquias Locais? Qual a sua origem?
Apesar das razões históricas que possam assistir à criação e constituição de autarquias locais, importa referir que nem sempre as causas e os motivos para a sua criação obedeceram a critérios idênticos no espaço e no tempo. Antropologicamente pode-se admitir que a existência destas resulta da própria genética humana, assente no espírito gregário e autóctone humano. É sabido que desde os momentos pré-históricos os indivíduos buscaram associar-se entre si para garantirem a própria sobrevivência no meio natural. Foi no período proto-histórico que assumidamente se formaram os primeiros grupos sociais, que surgiram por necessidade de repartição das funções familiares, sociais e colectivas, cujas decisões eram tomadas em torno do fogo de concelho.
A antiguidade clássica caracterizou-se pela expansão imperial. Para manter a paz sobre as regiões conquistadas, organizaram-se as comunidades locais. Neste quadro surgem os «municipium» ou «municipia» romanos. Da romanização do território actualmente designado por Portugal no que ao municipalismo concerne realça-se o Direito Romano como sendo a maior influência deixada pelo conquistador.
Durante o período de conquista e reconquista, as contantes oscilações de domínio muçulmano e cristão, particularmente entre o Douro e o Tejo, impeliram as populações a procurar organizar-se da forma que lhes era familiar, nas assembleias de matriz visigótica ou conventus publicus vicinorum.
O facto de o Poder Local ser um espaço onde se discutem e resolvem os problemas das comunidades é o elemento matricial e comum ao longo dos tempos, que liga os municípios actuais aos que os antecederam.
No caso português o impulso municipalista dá-se por necessidade de afirmação da autoridade régia face ao domínio feudal vigente. Tal sucedeu através da introdução das inquirições, confirmações, leis de desamortização ou leis do beneplácito régio e através dos forais constituintes dos primórdios do direito municipal. As Assembleias de homens-bons persistiram até às Ordenações Afonsinas e Manuelinas que vieram concentrar a gestão territorial nos juízes de fora e nos corregedores até ao constitucionalismo monárquico. No século XIX, Miguelistas e Liberais impuseram aos Municípios soluções ora centralizadoras, ora descentralizadoras, como as formuladas no Código Administrativo, de Passos Manuel.
Durante a I República assiste-se de novo a oscilações no modelo organizativo e político no espaço municipal. O projecto de Código Administrativo de António José de Almeida apesar de aprovado na Câmara dos Deputados nunca passou do Senado, constituindo tal uma atrofia ao municipalismo da jovem República.
Durante o período do Estado Novo, através do Código Administrativo de 1940, de Marcelo Caetano, assistiu-se ao esvaziamento do poder dos Municípios pela centralização e a apertada tutela ao financiamento destes através de subsídios e comparticipações.
Com a implantação do regime democrático voltaram aos municípios, a descentralização, bem como as autonomias gestionária, financeira e administrativa. Os órgãos autárquicos passaram a ser eleitos.
Nesta breve viagem no tempo intencionalmente não falei das freguesias, cuja matriz paroquial resulta de uma herança vinda dos tempos de domínio da organização territorial eclesiástica e que em si mesmo mais não são do que a extensão no tempo de idos centros de decisão de matriz pouco republicana e nada laica.
A vontade de repensar o Poder Local, ao invés de reparos ocasionais, com reforços de competências que até poderão fazer sentido ou com a legitimação democrática de órgãos que até agora têm tido uma acção de pendor técnico, considero que seria mui oportuno questionarmos o modelo-base que temos. Esta dicotomia estranha entre freguesias e municípios e a necessidade abrilista que confundiu o princípio da igualdade com a igualdade das necessidades territoriais, devem ser reponderadas.
É tempo de preservarmos o melhor que o Poder Local foi formulando desde o período proto-histórico onde a participação popular se tem revelado a chave-mestra, e sem complexos, nem de inferioridade, nem de superioridade, sermos capazes de olhar para outras experiências e colher delas o que melhor se possa adaptar à nossa realidade e acima de tudo às nossas necessidades e possibilidades.
Um pouco de benchmarking aqui pela Europa, ou mesmo noutras latitudes, onde até fomos inspiração inicial, levar-nos-ia a perceber que a Alemanha mostra-nos que igualdade é um direito para os cidadãos não para os territórios e por tal tem Municípios com mais competências do que outros, a orgânica e organização destes nem sempre é igual. O mesmo se passa no Reino Unido onde as Parish (autarquias rurais) chegam a deter mais competências do que as Non-Metropolitan Counties, estas por sua vez idênticas nas atribuições aos Condados existentes em alguns Estados americanos, mas com formulações de base diferentes, como a relativização da figura do Mayor face ao liderança administrativa, quer em terras do Tio Sam como em algumas regiões da Alemanha. Por outro lado, verificaremos que em França e Itália a ideia de Comuna oscila entre a dependência e a independência do Estado Central, ou se olharmos para os nuestros hermanos e verificarmos o sentido que eles dão à interdependência dos órgãos ao aceitar que os municípios e as regiões tenham representantes de uns e dos outros em cada um deles. Nós quase que fizemos isso com a presença dos Presidentes das Juntas de Freguesia nas Assembleias Municipais, todavia fizemo-lo sem garantir a reciprocidade.
A questão não pode ser vista pela rama, não se pode reduzir à mera dicotomia entre os recursos e as competências. Este é um momento óptimo para avaliarmos o modelo estruturalmente falando. Reduzir um assunto desta dimensão a recursos não é diferente do poucochinho a que nos levou o Livro Verde e só serve para gerar reacções como a recentemente tomada pela Autarquia da Cidade Invicta.