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No passado dia 20 de Novembro começou o Mundial de Futebol no Qatar. Como acontece em todos os mundiais de futebol, iniciou-se uma espécie de peregrinação em jeito de via sacra para os Coliseus de outrora, a que ora chamamos de Estádios. Antes disso, a construção desses santuários ao deus-Bola contou com a morte de 6.751 imigrantes, cuja presença no Qatar era do conhecimento das embaixadas dos seus países. Assim, a India contribuiu com 2.711 mortos, o Nepal com 1.641, o Bangladesh com 1.018, o Paquistão com 824 paquistaneses e o Sri Lanka com 557.
No mês anterior ao mundial fomos aquecendo com a novela Cristiano Ronaldo versus Manchester United, que tantas opiniões e tanto tempo de debate nos tomou. Tema este que continuou já durante a participação da selecção portuguesa no Qatar. Alguma media, baseando-se em frames escolhidos a dedo e num critério editorial baseado na ideia de que as notícias devem ser “servidas” no quadro das necessidades dos consumidores permitiram-se criar notícias. Tal sucedeu até ao desfecho da presença lusitana perante a selecção de Marrocos. Para onde nos virássemos lá vinha a situação do Ronaldo e os eventuais efeitos desta no balneário da selecção. Fosse a nossa media tão boa a questionar o Poder pelas más feitorias que formula, como foi a massacrar e a procurar sangue neste mundial e até poderíamos ter um 4.º Poder à séria. Sem prejuízo daqueles media que ainda labutam diariamente por informar mesmo, ainda temos de ouvir o lamento enxofrado dos grandes media por as pessoas procurarem informação nas redes sociais.
Este mundial qual parte da fatídica tríade Fátima, Fado e Futebol serviu na perfeição para promover a sempre tão activa alienação, qual opiáceo social. Começa pelo próprio Qatar, um emirado autocrático, sem respeito pelos mais elementares direitos humanos, organizador deste Mundial de Futebol após um processo de escolha nada transparente, capaz de subornar altos dirigentes políticos europeus para limpar a sua imagem e que ainda contou com um apelo presidencial à amnésia geral durante o período de adoração ao deus-Bola. Nós já tão propensos à alienação, ainda contamos com este apelo presidencial a subir a fasquia para activamente nos alienarmos sobre o que por aquelas bandas ocorre.
Mas, porque não esquecer o que se passa no Qatar? Se nos esquecemos do que se passa mesmo nas nossas barbas e ainda nos servem a novela “CR7 vs M.U.”, porque razão haveríamos nós de nos debruçarmos sobre temas que nos tirariam das graças do deus-Bola. O melhor mesmo é fazer o habitual e deixar que nos passem ao lado temas como:
- O António Costa que, sem ninguém se aperceber, travou a descida dos combustíveis;
- O Sr. Manuel que morreu após 2 horas à espera do INEM;
- A D. Maria que após 16 horas de espera na urgência resolveu ir beber um chazinho e ver a Selecção, pois as Urgências do País parecem a Primark em saldos, com a diferença da Primark atender muito mais rápido;
- As macas pelos corredores lembrando a Ponte 25 de Abril às 8 da manhã;
- Os agentes de autoridade que são agredidos por todo lado, sofrendo emboscadas e que vão parar em estado crítico aos hospitais;
- Os milhares de jovens que estão sem urgência pediátrica;
- Os milhares que nas escolas continuam sem aulas por falta de professores;
- A inflacção que segundo o Costa não passaria dos 7,5% e já ultrapassou os dois dígitos, cujos efeitos se encontram por sentir na totalidade graças aos paliativos de €125,00 em Outubro e aos Subsídios de Natal, entretanto pagos;
- As cheias que nos têm assolado e os erros urbanísticos que repetida e reiteradamente fornecem mais e novos espaços onde podem ocorrer e gerar danos materiais e humanos;
- As obras não feitas de vias sem qualquer resguardo que previna a precipitação de viaturas em linhas de água e mitigue as ocorrências de sinistros que resultam na morte de cidadãos;
- Os custos de reparação dos negócios e dos alojamentos de quem tudo perde com as intempéries.
Infelizmente, o importante é dirigir a fúria e o ódio primários pelas redes sociais contra quem já nos deu tantas alegrias e sim, deu a conhecer Portugal ao Mundo. Mundo esse que o respeita muito mais que o tuguinha invejoso frustrado com o sucesso que pouco procurou para si e assim não o alcançou.
Pelo caminho, o Poder Político a coberto de distracções futebolísticas e contando com o natural estado letárgico de grande parte de nós continua a pôr e a dispor sem que haja reacção deste «povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta» [Guerra Junqueiro, in ‘Pátria (1896)]
Ainda esta semana na última sessão da Assembleia Municipal de Odivelas, onde além dos mimos remetidos pela maioria (absoluta) aos seus pares, ainda vimos o Orçamento Municipal para 2023 e as Grandes Opções do Plano para o período de 2023 a 2027 ser aprovado ilegalmente, além de vermos igual desfecho face ao Mapa de Pessoal do Município de Odivelas, sem que, imagine-se, se conheçam as competências específicas de cada posto de trabalho, como obriga a Lei. Fica a dúvida: “Como definirá esta entidade o perfil daqueles que pretende contratar? A olho? Será que sabem o que faz quem trabalha naquela edilidade?”
Depois de sobressaírem as inabilidades em gerir a crise dos recentes temporais, assistiu-se à aprovação de documentos estratégicos de forma ilegal, só suplantados por um Presidente da Assembleia Municipal que fazendo vista grossa aos apelos dos partidos da oposição para que se cumpra a lei, ainda perguntou ao Presidente de Câmara se queria tirar os tais pontos ilegalmente apresentados que acabaram por ser votados, como se tal não fosse da responsabilidade do órgão que ele próprio preside, a própria Assembleia Municipal, esquecendo todos os que votaram aquele Orçamento e GOPs que são solidariamente responsáveis pelo que fizeram e podem ser chamados a assumir responsabilidades financeiras pelos seus actos.
Tudo isto num registo onde a ignorância e arrogância andaram de mãos dadas. Um tratado!
Não fora a alienação militante generalizada, haveria este Povo que elege de olhos fechados, de perceber o que tem andado a fazer, dando Poder a quem nem sequer o entende e sabe exercer. Mas, haja futebol e suas novelas, que o nosso Fado nos enxaguará as lágrimas que Fátima não conseguir curar.
– Paulo Bernardo e Sousa
Politólogo