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“O país viveu durante a pandemia totalmente à margem da Constituição vigente. O Governo criou crimes de desobediência por simples decreto ou por resolução do Conselho de Ministros, quando a matéria é da competência do Parlamento, e as autoridades de saúde, sem qualquer base constitucional, sujeitaram os cidadãos a períodos de confinamento obrigatório, mesmo quando os mesmos não tinham comprovadamente qualquer doença contagiosa. Por isso o Tribunal Constitucional já veio afirmar que dos 32 casos que teve que decidir sobre medidas tomadas durante a pandemia, declarou a inconstitucionalidade em 23, uma média de 72%. Estas decisões de inconstitucionalidade só foram possíveis porque houve Advogados que corajosamente requereram nos tribunais providências de habeas corpus em defesa dos seus constituintes, dado que nenhuma das entidades com competência constitucional para exercer a fiscalização da constitucionalidade destas medidas alguma vez o veio a fazer.” (sic) in sitio institucional da Ordem dos Advogados
A revisão constitucional está novamente na ordem do dia, impulsionada, quem diria, pela pandemia da covid-19, e o texto supra é muito elucidativo dessa consequência, e mostra por que razão se pretende rever a constituição.
Claramente matéria, especifica, da maior importância que nos convoca a todos, e a merecer nesta sede tratamento adequado. Mas não o vou fazer, nesta oportunidade, apenas recuperar os motivos por que temos aí á porta um processo de revisão constitucional. Naturalmente uns querem uma revisão minimalista, cirúrgica, outros pelo contrário, querem-na mais abrangente, afinal a abertura de um processo de revisão é uma oportunidade única e há que aproveitar.
Pela minha parte, preferiria assuntos ligados ao Poder Local, e à inclusão no elenco de leis orgânicas (leis de valor reforçado, também conhecidas como leis musculadas), matérias como as finanças locais (quem não se lembra que os governos de Cavaco Silva, nunca cumpriram com as leis de finanças locais, alterando-a a seu bel prazer, vindo António Guterres a inverter essa situação), bem assim como a elaboração de um Código Autárquico, há tanto tempo reivindicado, mas sem sucesso, passando ainda pelo estatuto das autarquias locais e dos seus titulares, matérias objecto de análise num ensaio que publiquei em 2016.
Sucede, porém, que um assunto, quiçá, bem menos importante, mas de enorme impacto na governação do País, impõe a sua análise, e prende-se com as nomeações de membros de governo (ministros e secretários de estado), e à sucessão de demissões e exonerações, especialmente neste governo, cuja posse aconteceu à poucos meses.
Nicolau Maquiavel, 1513, trouxe à ciência politica, várias “leis” uma delas, que cito muitas vezes, “O bom Príncipe, é aquele que sabe escolher os seus adjuntos” , numa linguagem actual será algo como “o bom líder (governante) é aquele que sabe escolher o seu gabinete (adjuntos, equipa)”.
Esta “lei” é um excelente “farol” para avaliar a competência de liderança de alguém, mas tem de ser tomada com sensatez, pois a sua aceitação literal faria estragos incomensuráveis. Dito de outra maneira o “Príncipe” se não dispuser de toda a informação necessária a uma decisão (escolha), não pode ser responsabilizado, pelas consequências negativas que daí resultem.
Passando para uma aplicação pratica, daquela “lei” consideremos um Primeiro-Ministro que ao formar o seu governo, a sua equipa ministerial, escolhe pessoas, com base no conhecimento que possui das aptidões, perfis, dessas pessoas, sopesando as informações como o seu critério politico. Naturalmente, se posteriormente, se vier a verificar que avaliou mal a pessoa, então ele próprio fica em causa.
Porém, se a essa avaliação, o visado (candidato a ministro) ocultou, ou omitiu, dados importantes para a análise do primeiro-ministro, obviamente, não se pode assacar responsabilidades, ao Primeiro-Ministro, pois isso seria exigir-lhe o dom da adivinhação, razão porque a “lei” de Maquiavel não é aplicável. Relativamente aos secretários de estado, aplica-se integralmente o que se disse, para os ministros.
A sucessão de demissões, por variadas razões, de membros deste governo, levou o Primeiro-ministro a anunciar, no Parlamento, a proposta de um circuito de escrutínio, entre o Presidente da República e o primeiro-Ministro.
Noutras latitudes (EUA, Comissão Europeia, etc) os membros do executivo, indicados pelo chefe do futuro executivo, são sujeitos a um escrutínio vinculativo, por parte de órgãos legislativos, vulgo parlamentos. É uma boa base de partida, mas, e entre nós esbarrará na Constituição, onde se define quem responde a quem? Vejamos:
- Artº 187º (Formação e Responsabilidades) nº 1 “O primeiro ministro é nomeado pelo Presidente da República ouvidos mos partidos representados na Assembleia da república (o legislador constitucional ignora que quem está representado na Assembleia da República é o povo e não os partidos, que são um mero veículo dessa representação), e tendo em conta os resultados das eleições (até 1982 o Conselho da Revolução também tinha de ser auscultado pelo Presidente da Republica) ”;
Assim cabe ao Presidente nomear o Primeiro-ministro. É pacífico. Isso gera uma responsabilidade.
- Artº 190º (Responsabilidade do governo), “O governo é responsável perante o Presidente da república (PR) e a Assembleia da República (AR)”. (temos aqui uma dupla obrigação de reporte do governo, enquanto órgão colectivo, a outros dois órgãos de soberania – PR e AR).
O Governo, no seu conjunto, e em conjunto, responde perante quem o nomeou (PR), e de onde emana (AR).
- Artº 191º (Responsabilidades dos membros do governo), nº 1,“O primeiro-ministro é responsável perante o Presidente da República, (aqui já é um dever de reporte pessoal) e no âmbito da responsabilidade política do governo, perante a Assembleia da República”
Aqui o legislador constituinte, ensaia uma divisão de responsabilidade, sobre o primeiro-ministro, impondo ao chefe do executivo um dever de reporte pessoal ao PR, e no que se refere à responsabilidade política de todo o governo, impõe-lhe o reporte á AR. Avulta a inexistência de uma definição de “responsabilidade política”, cuja utilidade seria essencial.
- Nº 2, “Vice-primeiro ministros, e ministros são responsáveis perante o Primeiro Ministro (reporte pessoal de cada um deles, perante o chefe do executivo), e no âmbito da responsabilidade politica do governo perante a AR”.
- Nº 3 o secretários de estado e subsecretários de estado, são responsáveis perante o primeiro-ministro e o ministro (o jurisconsulto Nandim de Carvalho, considera mesmo que a estes governantes “não cabe em princípio responsabilidade politica própria” o que acompanho na medida em que os secretários de estado e os subsecretários, não têm competência própria, apenas competências delegadas pelo respectivo ministro).
Note-se que estes governantes não têm responsabilidades politicas perante a AR, como sucede no caso do primeiro-ministro e dos ministros.
Sopesadas estas regras constitucionais, e sem prejuízo da prerrogativa constitucional de caber ao Primeiro-ministro propor a sua equipa governativa, parece viável, compulsado o Artº 191º, nº 1 e 2, que a responsabilidade dos ministros perante a AR, possa retroagir a um momento anterior à efectiva nomeação, e aplicar-se, ainda que não a título vinculativo, para não ferir o Artº 187, nº 2 (propositura de membros do governo pelo chefe de executivo, ao PR), ao momento de escrutínio das condições para o cargo, em sede de comissão parlamentar, com audição pública do processo, ou, aproveitando o ensejo da revisão constitucional esta acolher, o escrutínio de nomes propostos pelo primeiro-ministro, nos termos acima referidos, clarificando definitivamente o assunto.
Não me choca, ainda assim, que os partidos tenham processos formais de escrutínio, sobre os seus militantes, de modo a aferir da capacitação dos mesmos para cargos públicos.
Oliveira Dias, Politólogo
(autor do ensaio “ O Poder Local nas Constituições Portugueses” ,1ª edição, artelogy, 2016)