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A Revolução industrial, do século XIX, conhecida como “take off”, espoletou em Inglaterra, mas rapidamente se disseminou para os Estados Unidos da América onde rapidamente a industrialização, fomentada pelas grandes fábricas, dava trabalho a muitos milhares de trabalhadores, cujas condições de trabalho roçavam a indigência laboral, e a dignidade dos trabalhadores era espezinhada por uma classe patronal, dona da indústria, para quem o dólar era o único objectivo de vida.
Este “statos quo” foi terreno fértil para uma vaga de reivindicações, de cariz eminentemente laboral, a propósito da qual uma nova palavra entrou no léxico no mundo do trabalho, cuja origem a denuncia como francesa – Gréve.
A tradução literal da palavra “gréve”, significa um tipo de solo, ou piso, duma mistura de terra batida e gravilha, existente próximo de uma área portuária em França, onde se localizava um hotel, na praça ”de la gréve”, hoje “Place de L’hotel-de-vielle”, então pouso habitual de desempregados e trabalhadores do porto, onde faziam as suas reivindicações, fosse por trabalho, fosse por melhores condições de laboração. Daqui até se expandir para outras latitudes foi um instante.
As reivindicações por melhores condições de trabalho são milenares, e há noticia de uma paralisação de artesãos no antigo Egipto, durante o reinado de Ramsées III, em 1152, AC, tida como a primeira greve da história, isto numa altura em que a remuneração era uma quantidade de sal, tão importante para os povos, pois com ele se conservavam alimentos e condimentavam outros, daí derivando a palavra “salário” (era a quantidade de sal diária que recebiam pelo trabalho prestado).
É comummente aceite, hodiernamente, ter acontecido, no pós “take off” da revolução industrial, a primeira greve em 1824, quando 102 operários da indústria fabril de Pawtucket, em Rhode Island, nos Estados Unidos, pararam os seus teares, depois da entidade patronal baixar ordenados e aumentar a jornada de trabalho, provocando a revolta dos trabalhadores.
Já em Portugal, a recusa ao trabalho dos operários da fundição em 1849, é considerada a que mais próximo existiu de uma primeira greve.
Data de 6 de Dezembro de 1910, nos primórdios da Republica, portanto, a primeira lei da greve, concedendo o direito ao “lock out” ao patronato, o direito à greve, pese embora com fortes penalizações para quem afectasse o funcionamento normal das empresas, bem como para quem impedisse outros trabalhadores de trabalhar (os piquetes de greve), e vedava liminarmente aos funcionários públicos e aos assalariados do governo e das autarquias, o direito à greve.
Esta legislação, lançou uma vaga de contestação no País, com enormes manifestações por parte dos sindicatos, e dos trabalhadores.
Salazar, em Setembro de 1933, pretende responder ao estado de convulsão sindical, com a lei 23.050, extinguindo sindicatos, substituindo-os por sindicatos corporativos tutelados pelo estado, e dando um prazo de 3 meses aos 754 sindicatos que então existiam para se adaptarem á nova lei.
Apenas 57 o fizeram, os restantes organizaram-se no sentido de lançar a nível nacional enormes contestações, que conduziram á primeira greve geral nacional em 18 de Janeiro de 1934, espoletando uma contra-reacção governamental, cujo corolário foram milhares de prisões, deportações e mortes, esmagando os opositores ao regime laboral salazarista.
Após a “revolução dos cravos”, e pelo Decreto de Aprovação da Constituição nº CRP 1976 de 10-04-1976, a greve assume dignidade constitucional, definindo no seu Artº 59º, nº 1, a garantia do direito à greve, e no seu nº 2, confere aos trabalhadores a competência para definir o âmbito de interesses a defender através da greve, mais determinando não poder a lei (o legislador ordinário) limitar esse âmbito. Ou seja, o direito à greve passa ser universal, e os objectivos da mesma deixam de se conter exclusivamente no plano profissional. Ulteriores revisões constitucionais, passaram a tratar esta matéria no Artº 57º, da CRP, aditando complementarmente a proibição do “lock out”, bem como atribuindo ao legislador ordinário a definição de serviços mínimos indispensáveis para acorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis.
Após fixada a matéria em sede constitucional, entrou em jogo o legislador ordinário, revogando o Decreto-lei 23.870/70, de 18 de Maio de 1934, com o Decreto-Lei nº 392/74, de 27 de Agosto, o qual logo no seu Artº 2º nos dá uma noção de greve – “considera-se greve a recusa colectiva e concertada do trabalho tendente à defesa e promoção dos interesses colectivos profissionais dos trabalhadores.”, o que não respeita o preceito constitucional que proíbe a limitação, por lei, do âmbito da greve. Já o nº 3, na mesma linha de potencial inconstitucionalidade, define a quem se proíbe a greve – forças militares e militarizadas, magistrados judiciais, forças policiais e guardas prisionais, bombeiros. A função pública “lacto sensu” vem no Artº 4º onde se determina que será reconhecido o direito à greve (despiciendo porque já a CRP o reconhecia) nos termos a definir em lei especial.
A Lei 65/77, de 26 de Agosto, ao revogar o DL nº 392/74, vem “limpar” aquelas inconstitucionalidades, sem ruído, eliminando-as, e em linha com ao CRP, determina no Artº 1, nº 2, que são os trabalhadores que definem o âmbito dos interesses a defender através da greve (portanto legitimando as greves de caracter politico, e/ou outras, que não apenas as de conteúdo laboral ou profissional), define ainda que não se aplica às forças militares e militarizas (e só a estes). Posteriormente a Lei nº 35/2014, de 20 de Junho, instituindo o Regime de Trabalho em Funções Pública, confirma, pelo seu Artº 394º, o direito à greve para os trabalhadores do sector público. Respondendo á regra constitucional fixada no nº 3, do Artº 57º da CRP, que determina a lei (no caso o Regime de Trabalho em funções Públicas) a definição dos serviços mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis (SIC), vertido no Artº 397, nº 1 deste regime do trabalho em funções públicas, mas determinado que a necessidade social impreterível, a satisfazer pelos serviços mínimos, em sectores nomeadamente, os elencados no nº 2 deste artigo. Como a educação é referida apenas no que concerne a exames nacionais, os sindicatos consideram não pender sobre as escolas a obrigação constitucional e legal dos serviços mínimos. Dito de outra maneira, nem os sindicatos aparentam perceber que juridicamente as palavras “nomeadamente” e/ou “designadamente” têm um efeito meramente exemplificativo, e aberto, por um lado, e por outro lado, afastam do conceito de satisfação de necessidade social impreterível, plasmada na sede constitucional, as funções das escolas e dos professores.
A caixa de Pandora que a CRP abriu, ao não distinguir o diferente peso que o sector público e o sector privado têm, tratando por igual, o que é desigual, manteve-se, pois, aberta.
Feito, em síntese, o necessário enquadramento da questão, a greve é uma forma de reivindicação laboral, seja para melhoria de salários, seja, de condições de trabalho.
Entretanto, ao longo dos anos, sobretudo em contexto de democracia, este instrumento de reivindicação tem vindo, lenta mas sistematicamente a resvalar para outros campos de reivindicação, que não apenas o laboral, e hoje adentra o combate partidário, a reivindicação política, visando a queda de ministros e governos, e nesse particular tendem a substituir-se aos partidos e usurpar a missão destes.
Nesta verdadeira mudança de paradigma, se inclui a curiosa circunstância de apropriação, com respaldo constitucional, como acima se referiu, por parte da administração pública, de um instrumento reivindicativo cuja génese foi o sector privado, onde a correlação de forças entre o empregador e o trabalhador faz deste o elo mais fraco, em benefício claramente para o primeiro, em desfavor do segundo, assim se compreendendo o recurso á greve, pois esta, quando utilizada, afecta-lhe o bolso.
Contrariamente, no sector público, onde as condições de trabalho no que tange á estabilidade de emprego, e regalias que o sector privado não oferece, aliado à prestação de um conjunto de serviços públicos que mais ninguém assegura, e que derivam das obrigações do estado para como cidadão, mal se compreende a razão por que lhes assiste o direito á greve.
Veja-se o caso da educação. Entra pelos olhos dentro que independentemente das razões que lhes esteja na base, esta greve tem objectivos muito difusos, basta ouvir os entrevistados pelos órgãos e comunicação social, cada um tem as suas razões, tão díspares, percebe-se que as razões laborais, não são as únicas que subjazem à greve. A “créme de la créme” é a chamada municipalização da educação, uma falácia mas que os sindicatos dos grevistas insistem em fazer bandeira. Porquê? Algumas das suas reivindicações são justas, outras simplesmente impossíveis de satisfazer, como é caso de recuperarem o tempo congelado, como se os professores fossem os únicos empregados do estado, satisfazer tais pretensões levam á bancarrota do estado, mas que importa isso … .
E os afectados? São quem paga? Claro que não, os afectados são os trabalhadores cujos ordenados são muito menores que os de um professor, destes em greve, e cujos aumentos salariais ficam muito longe dos 100 euros mensais atribuídos aos professores e que não têm onde deixar os seus filhos, por causa de escolas encerradas, visto não ser viável levá-los para o seu local de trabalho (o patrão nem quer saber disso), resta-lhes, como opção, deixá-los entregues a si próprios, ou então faltarem ao emprego, para ficar com os filhos, vendo os seus parcos ordenados cortados pelos dias que faltam, e quem sabe, considerando que ao contrário dos professores em greve, cuja precariedade é incomparavelmente inferior aos do sector privado, pode até ser que vejam denunciados os seus contractos de trabalho, por excesso de faltas injustificadas.
Os professores até podem ter alguma razão, mas no contexto da função pública não se podem considerar os mais afectados seja em condições de trabalho, seja em condições remuneratórias, seja em horário de trabalho.
Reconheça-se que talvez a principal razão de queixa dos professores seja a colocação de professores longe das suas residências, e o tempo dessa colocação. Não me recordo de nos tempos de governação da direita, em que as colocações eram anuais, de ter havido contestação por causa disso, no entanto com Sócrates esse período passou para três anos, e foi com ele que surgiram as maiores manifestações, a propósito da avaliação de desempenho, porque os senhores professores achavam uma ignomínia serem avaliados. Ninguém consegue alcançar a razão que leva toda uma classe cuja missão é avaliar os seus alunos, considerar que eles próprios devem ser imunes à avaliação.
Quando um encarregado de educação se vê confrontado com a necessidade de recorrer a explicadores para os seus filhos, porque lá na escola a sra. Professora não faz o seu trabalho, pouco lhe importando os alunos que deixa para trás, pois no final do mês recebe o mesmo, e é certinho, acaba a pensar que os impostos que paga afinal não servem para nada.
Em todas as profissões existem bons profissionais e profissionais menos bons, mas não me venham dizer que nos professores só existem bons profissionais, porque na realidade não é assim.
Quando um professor do ensino secundário se retira com três mil e tal euros de reforma, não se pode concluir que o seu pecúlio seja “miserável”.
O que dizer a quem ganha o ordenado mínimo nacional, e para tanto tem de trabalhar mais de 40 horas semanais, quando nenhum professor trabalha tantas horas? O argumento, tantas vezes avançado que o professor trabalha não só em contexto de aula, mas também fora dela, percebo-o bem, pois como formador são mais as horas de “back office” do que as de formação efectiva, mas ao contrário dos formadores, as matérias dos professores são mais ou menos as mesmas todos os anos, e não têm de produzir os materiais didácticos, já para não dizer que o formador só recebe as horas que faz, e ainda assim o pecúlio não cobre, nem de perto nem de longe, o trabalho que tem, as tais horas de gabinete, e as horas vagas do “horário” não recebe.
Qualquer reivindicação sectorial, profissional, descredibiliza-se quando os “timings” escolhidos são-no a dedo, e servem não objectivos próprios laborais, esses são secundários, mas outro tipo de objectivos.
A actual greve dos professores não é inocente. É uma greve Politica. Num momento em que o governo se acha afectado com as sucessivas saídas do governo, com situações objecto das mais variadas investigações, seja pela inspecção geral de finanças, seja pelo ministério público, seja por audições parlamentares, seja por comissões de inquérito, ás quais se somam sondagens a evidenciar uma forte penalização para o partido do governo, salta á vista de toda a gente que as forças partidárias por trás de alguns sindicatos, mormente o dos professores, avaliando o impacto das suas manifestações, concluíram ser este o momento ideal, para lançar estas greves, a fim de colocar em crise o governo, utilizando para tal o ministro da educação como bode expiatório, numa catarse colectiva, cujo fim último é dar á oposição a prenda tão ansiada – a queda do governo por “motu próprio” ou por iniciativa presidencial com a dissolução da Assembleia da República. Não é por acaso que o omnipresente Marcelo já alertou a populaça que isto não é um problema do ministro da educação mas sim do governo … para bom entendedor meia palavra basta.
Tudo isto é chocante pela falta de seriedade, a que nem sequer se dão ao trabalho de disfarçar, para além de uma indigna desconsideração pelos encarregados de educação, com a suprema desfaçatez de virem dizer nas TV’s que estes compreendam e apoiam a sua “luta”, que lata … que latão.
MAS talvez ainda pior, seja a constatação de que o PODER LOCAL PORTUGUÊS está sob ataque, e imagine-se por parte de quem – PELOS PROFESSORES.
Já aqui escrevi um artigo de opinião titulado “A Municipalização da Educação”, e nele demonstrei que a alegada descentralização de poderes do estado para as autarquias no domínio da educação, são exíguas.
Alexis Tocqueville, num estudo que fez da sociedade americana do século XIX, escrevia: “as comunas (autarquias locais) estão para o poder, como as escolas para o ensino, colocam-nas ao alcance do povo”, e cheguei mesmo a escolher esta frase para ilustrar uma obra de que sou autor titulada “O Municipalismo, em Portugal, Brasil Cabo Verde”, por achar particularmente feliz esta conjugação do Poder Local, com o Ensino, a escola, verdadeiros eixos, geradores de cidadania e concomitantemente de democracia. Dificilmente se concebe um povo evoluído sem educação e/ou sem Poder Local.
Hoje, Portugal assiste ao ataque que os professores desferem contra o Poder local, quando o diabolizam com a famigerada “municipalização” da educação, abjurando, como se de uma força diabólica, os municípios e as freguesias se tratassem, a hipotética, longínqua, e afastada, possibilidade da eventualidade das autarquias puderem vir a ter responsabilidades acrescidas no “quintal” dos professores, e isso é patente não porque o governo tenha qualquer intenção nessa matéria (já o afirmou, reafirmou, e reiterou á saciedade), mas sim, e isso tem sido bem vincado por professores manifestantes, pelas declarações de dois presidentes de câmara, o de Lisboa e o do Porto, sobre o assunto, fazendo naturalmente a apologia, que eu defendo também, do Poder Local ter maiores responsabilidades no domínio do ensino. Este ataque a todos os títulos é inaceitável, injusto, antidemocrático e intolerável.
Inaceitável, porque não podem os professores pretender obter proveitos á custa da ofensa de terceiros, no caso as autarquias locais.
Injusto, porque as autarquias sempre estiveram ao lado das escolas nos limites que a lei lhe impõe, e às vezes até … por aqui me fico (fazem mais do que deviam).
Antidemocráticos, porque os professores, atacam um dos pilares fundamentais da sociedade democrática portuguesa. Os cidadãos eleitos para os órgãos das autarquias locais submetem-se ao escrutínio universal, os professores não.
Intolerável, quando Rui Moreira e Carlos Moedas se pronunciam sobre o tema da descentralização do estado para o Poder Local no domínio da educação e ensino, uma classe profissional, os professores, estão corporativamente a pôr em causa o direito à opinião daqueles, e de todos os outros eleitos locais.
Nem sei, sinceramente, como esta questão só parece incomodar-me a mim … se calhar sou eu que estou enganado – certa ocasião sendo eu Presidente da Assembleia de Freguesia de Famões, um dos meus vices, professor do ensino secundário (coincidência) sentenciou-me “Oliveira Dias, não interessa que tenhas razão, o que interessa é se os outros ta dão…”. Paciência.
Oliveira Dias, Politólogo
Autor da obra “Municipalismo, em Portugal, Brasil e Cabo Verde”, 1ª edição, 2007