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Foram suscitadas dúvidas sobre a licitude de uma Freguesia, proceder à divulgação, integral, das sessões dos seus órgãos representativos, quando públicas, recorrendo a meios próprios para o efeito, após a análise de uma informação da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento da Região Norte, (CCDRN), de Agosto de 2022, onde dava conta da posição da Comissão Nacional para a Protecção de Dados (CNPD), relativamente à matéria em causa.
A posição da CNPD, em razão de matéria, acha-se vertida em dois pareceres, designadamente, 2022/61, e 2022/62, um relativo a um pedido da Junta de Freguesia de Atiães, sobre o seu “Regulamento de transmissão em directo das assembleias sede freguesia de Atiães”, e relativo ao pedido formulado pelo Presidente da Assembleia Municipal do Município de Mira, relativo ao projecto de alteração ao Regimento da Assembleia Municipal de Mira, visto este prever a introdução de um capítulo relativo à “Transmissão online das sessões das Assembleias Municipais”, respectivamente.
Portanto a questão central em apreço é a transmissão das sessões, no caso específico, das respectivas Assembleias, ou seja, os órgãos deliberativos, seja da Freguesia de Atiães, seja do Município de Mira, o que não afasta, a não suscitada, idêntica possibilidade de transmissão das sessões dos respectivos órgãos executivos.
Resumidamente, a CNPD pronunciou-se desfavoravelmente a ambas as pretensões, por considerar que a transmissão em directo (ou até mesmo em diferido), se caracteriza por acto de tratamento de dados pessoais, sob a forma de recolha de imagem de pessoas (titulares de dados pessoais) identificadas ou passiveis de identificação, presentes naqueles eventos, onde até podem ocorrer situações em que os cidadãos expondo os seus problemas, podem abordar matérias da sua vida privada, incluso a abordagem de dados pessoais sensíveis, carecendo tal, em vista ao fundamento de licitude do RGPD, de consentimento previsto no RGPD, e segundo a CNPD, não se compaginando tal com uma transmissão, pela qual se disseminaria tais informações. A CNPD defende, mesmo que cada cidadão, assistente àquelas sessões, teriam de dar o seu consentimento nos termos do Artº 6º, alínea a) do RGPD, mas não se ficando por aqui, a CNPD estende essa obrigação inclusivamente aos eleitos que participem nas referidas sessões. A CNPD escora a sua apreciação na, segundo apontam, inexistência de uma base legal que autorize este tipo de transmissões, caso em que a fonte de licitude seria o cumprimento de obrigação legal, com excepção da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, ao abrigo das medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV- 2 e da doença COVID-19, tendo, entretanto sido extinta, a eficácia do diploma (daí o carácter excepcional e temporário do mesmo), e não mais existindo no nosso ordenamento jurídico, repristinando a situação de normalidade pré-existente à mesma.
Ressalta á vista que os respectivos DPO daquelas autarquias não foram consultados, como deveria ter acontecido, por força do Artº 38º do RGPD, pelo menos não há notícia, naqueles documentos, disso mesmo, o que configura, por si só, uma violação ao RGPD. O pedido de parecer à CNPD deveria ter sido formulado pelos DPO de cada uma daquelas autarquias.
Importa, pois, perceber se as restrições invocadas pela CNPD, e aparentemente seguidas pela CCDRNorte, colhem, no que á transmissão de sessões, por parte dos órgãos representativos das autarquias locais diz respeito, e, sempre, numa perspectiva de alinhamento com a conformidade do RGPD.
A ausência de um comando legal que legitime um acto da administração, no caso do Poder Local, através dos seus órgãos, viola o princípio da legalidade, plasmado no Código do Procedimento Administrativo, a que estão submetidos a administração pública, a par das fontes de licitude do RGPD, mormente o “cumprimento de obrigação legal”, por força da alínea c), do nº 1, do Artº 6º (fontes de licitude), do RGPD, entendendo-se, assim, ambas (CPA e RGPD) complementares entre si, concorrendo para uma mesma finalidade.
Existirá, então, escora legal suficiente, à transmissão de sessões e/ou reuniões dos órgãos representativos? Tudo se resume, às características dessas sessões, se públicas ou privadas, sendo certo que quanto às sessões e reuniões privadas se aplica, no nosso entendimento, na íntegra, as restrições trazidas à colação pela CNPD e seguidas pela CCDRNorte.
Diferentemente vai a nossa apologia no que concerne ao carácter público das sessões e/ou reuniões dos órgãos representativos das autarquias locais, e aqui tanto é válido para as sessões e/ou reuniões do órgãos deliberativos, cujo conforto constitucional “Artº 116, órgãos colegiais – as reuniões das assembleias que funcionem como órgãos (…) do poder local são públicas, excepto nos casos previstos na lei (sendo que para as autarquias locais a lei não preconiza nenhuma excepção)”, seguida à letra, pelo legislador ordinário, no Regime Jurídico das Autarquias Locais, vertido na Lei nº 75/2013, de 12 de Setembro, no seu Artº 49º “ as sessões do órgão deliberativo das autarquias locais (assembleia de freguesia e assembleia municipal) são públicas (…)”, e no que respeita aos órgãos executivos, junta de freguesia e câmara municipal, por força do nº 2. Do Artº 49º (sessões e reuniões), “os órgãos executivos das autarquias locais (Junta de freguesia e Câmara municipal) realizam, pelo menos, (significa que podem ser todas ou algumas) uma reunião pública mensal (…)”.
Percebe-se porque o legislador constitucional, e o ordinário, impõem este caracter “público” de TODAS as sessões e reuniões, das assembleias de freguesia e das assembleias municipais, reservando-lhes inclusivamente espaço próprio de intervenção do público nesses órgãos, (aqui numa acepção alargada e não confinada aos recenseados das respectivas circunscrições), deixando à junta de freguesia e à câmara municipal, alguma discricionariedade para fixar o caracter público em algumas sessões e/ou reuniões, mas vinculando-os a um mínimo mensal de uma por mês, claramente o objectivo é respeitar escrupulosamente os princípios da transparência e da publicidade, previstos no CPA, possibilitando, desta forma, um escrutínio livre e aberto, dos actos e contractos das autarquias locais, promovendo também uma democracia inclusiva.
Mas antes de tudo, o carácter público das sessões dos órgãos representativos das autarquias locais, dá primacialmente, expressão ao desiderato constitucional elencado no Artº 37º (liberdade de expressão e informação), designadamente no seu nº 1 “Todos têm o direito de se exprimir e divulgar livremente o seu pensamento, pela palavra, pela imagem, (sublinhado nosso) ou qualquer outro meio,(idem) bem como o direito a informar de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações”, e no nº 2 “ o exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura”.
Não se antevê melhor e mais completa forma, nem superior alcance, de dar expressão a estes direitos constitucionais e legais, do que em eventos de caracter PÚBLICO, como é o caso das sessões e reuniões dos órgãos representativos das autarquias locais. Eventos públicos, são espaços por natureza, onde maior publicidade se alcança, e no caso das autarquias locais, isso fomenta e potencia o escrutínio de uma cidadania activa das estruturas democráticas e seus interpretes, os eleitos.
As sessões e reuniões públicas dos órgãos autárquicos, abrem as portas a todos quanto queiram fazer-se presentes, independentemente da circunscrição onde o cidadão se ache recenseado, habite ou exerça profissão. O uso de meios telemáticos, independentemente da tecnologia usada, apenas ampliam o carácter público das sessões e reuniões, e nessa medida aumentam proporcionalmente o escrutínio.
O uso de meios telemáticos é vigorosamente recomendado ao sector público, por força do nº 1, do Artº 14º do CPA “os órgãos e serviços públicos devem (o verbo dever em direito público é um dever/obrigação) utilizar meios electrónicos no desempenho da sua actividade, de modo a promover a eficiência e transparência administrativa e a proximidade aos interessados.”, não fosse tudo quanto acima se demonstra, bastaria esta base legal para fundamentar a licitude das transmissões em vídeo ou filmagem da sessões e reuniões do órgãos das autarquias locais, assim vem-se somar à fundamentação dessa licitude.
Mesmo o diploma que transitoriamente, veio expressamente prever a possibilidade de transmissões, durante a pandemia, assumia que esta era uma forma de se “assegurar a publicidade da reunião” através de transmissão directa por internet ou outro canal de comunicação de que dispusesse a autarquia. Isto reitera a apologia aqui vertida, nos parágrafos 12º e 13º, e a circunstância do diploma já não estar em vigor, não coloca em crise o principio enunciado, apenas lhe retira a obrigatoriedade imposta pela impossibilidade de presença no local.
Concluída, assim, pela existência da base legal q.b. para a realização de transmissões, contrariando o douto parecer da CNPD, que obviamente não se acompanha, importa atentar em detalhe, às considerações feitas sobre a obrigatoriedade de se conterem, eventuais transmissões, ao principio de licitude do RGPD, consagrada no “consentimento” (alínea a), do Artº 6º do RGPD), uma das razões avançadas é o cidadão (titular de dados pessoais), participante, como público na sessão ou reunião pública, ter de dar o seu consentimento autorizando a recolha da sua imagem, e incluso declarações, para efeitos de transmissão, acautelando a sua privacidade e reserva pessoal, tal sendo desnecessário caso não houvesse nenhuma transmissão. Esta apologia colide com o facto de TODOS os presentes terem acesso às declarações do dito cidadão, pois ele tem de as proferir de viva voz e tem de se identificar para registo em acta, ou seja, está totalmente exposto. O “consentimento” parcial (porque só aplicável para transmissões) não existe. Um cidadão tanto pode estar presente na sessão ou reunião como pode à distância assistir através de transmissão, é sempre o mesmo cidadão, o que difere é meio ou a forma escolhida para ter acesso às declarações produzidas, e defender que se a forma for uma tem de pedir consentimento, se for outra não tem, não colhe. O consentimento é um instrumento dirigido ao conteúdo do dado e não à forma como esse dado é obtido.
Relativamente à consideração da CNPD sobre a necessidade de também os eleitos terem de dar o seu consentimento para recolha de imagens e declarações, não colhe pela simples razão que o exercício de uma função pública, em especial quando em efectividade, está sempre sujeita ao escrutínio público independentemente dos meios utilizados para recolha desse dados, que são por natureza públicos, não se aplicando reserva de imagem nem de identidade. Por exemplo, existe jurisprudência sobre a impossibilidade de um agente de autoridade obstar à recolha dos seus dados pessoais, quando em serviço, por parte de cidadãos, precisamente por estar investido de uma função por natureza pública. Assim é também para os eleitos, sejam eles das autarquias locais, sejam de Assembleia da República. Por esta razão é extemporânea a apologia creditada à CNPD.
Assim se conclui pela licitude da realização de transmissões, escoradas em vários normativos, do constitucional ao legal, conferido pelo caracter público das sessões e reuniões, com tudo quanto isso implica, como se conclui pela desadequação do fundamento de licitude escorado no “consentimento”, seja para os cidadãos que assistem aos eventos referidos, seja para os eleitos no exercício concreto das suas funções.
Não se ignora, porém, que um parecer de uma autoridade nacional como é o caso da CNPD, ademais contando com profissionais de eximia preparação em razão de matéria, tem muita força, e deve ser considerado, mesmo não o acompanhando, total ou parcialmente e o recurso a outras instâncias a fim de dirimir esta questão, de que avulta o recurso judicial, é uma hipótese, devendo ser ponderado o custo e o tempo a despender nessa opção, sendo certo que o ganho de causa, no final, será sempre gratificante.
Outra hipótese a considerar, e que não levanta dúvidas, é o recurso, ao invés de meios próprios da autarquia, recorrer a serviços externos de comunicação, designadamente a um órgão de comunicação social que façam a cobertura vídeo integral, ou não, consoante o desejado, das sessões e reuniões, públicas, e ad transmita no seu próprio site do OCS.
A Lei da imprensa, confere aos jornalistas a liberdade de acesso às fontes de informação (leia-se sessões e reuniões públicas dos órgãos das autarquias locais), incluindo o direito de acesso a locais públicos (alínea b), do Artº 22º).
O diploma que complementa orgânica e materialmente o RGPD no ordenamento jurídico português, a lei nº 58/2019, de 8 de Agosto, vem nesta esteira, no capitulo VI – situações especificas de tratamento de dados pessoais – no seu nº 1 definir “A protecção de dados pessoais, nos termos do RGPD e da presente lei, não prejudica o exercício da liberdade de expressão, informação e imprensa, incluindo o tratamento de dados para fins jornalísticos e para fins de expressão académica, artística ou literária”, com os cuidadosprevistosno nº 2, “O exercício da liberdade de informação, especialmente quando revele dados pessoais previstos no n.º 1 do artigo 9.º do RGPD (dados pessoais especiais, como origem racial, étnica, opiniões politicas, convicções religiosas e filosóficas, filiação sindical, dados genéticos, biométricos, dados de saúde, e orientação sexual) e no artigo 17.º (Direito a ser esquecido) da presente lei, deve respeitar o princípio da dignidade da pessoa humana previsto na Constituição da República Portuguesa, bem como os direitos de personalidade nela e na legislação nacional consagrados,” a que se soma especiais cuidados de acordo com o nº 4 “O exercício da liberdade de expressão não legitima a divulgação de dados pessoais como moradas e contactos, à exceção daqueles que sejam de conhecimento generalizado.” Ora aqui pode-se levantar a questão de um cidadão ao concretizar uma intervenção, ter de dizer o nome e morada para constar em acta, mas a verdade é que ao verbalizar esses dados, de viva voz, numa sessão ou reunião, está a colocá-los na disponibilidade pública, ou seja, no conhecimento generalizado. A própria acta é de consulta pública, livre.
Por último resta saber se existem órgãos de comunicação social que realizem este tipo de acompanhamento jornalístico, no caso concreto, na área metropolitana de lisboa. Nós, temos sorte pois o noticiaslx ( https://noticiaslx.pt/ ) há muito que o faz.
Oliveira Dias, Politólogo