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Olhando ao nosso redor, somos confrontados com a existência do que é aparentemente uma transformação profunda. No entanto, será importante questionarmo-nos sobre qual será a verdadeira profundidade desta transformação. Dado o risco de superestimarmos a sua importância, será conveniente tentar especificar se é simplesmente outra camada de verniz no processo de construção da história ou, pelo contrário, se estamos a viver uma conjuntura particular que irá modificar esse processo histórico.
Nesta conformidade, para esclarecer a dúvida, precisamos de estabelecer um critério claro que nos permita discernir que tipo de evento constitui uma singularidade na evolução da nossa espécie. Assim sendo, será útil começar por definir o conceito de ser humano, como sendo um ser essencialmente primata com instintos sociais acentuados, dotado de uma inteligência que é expressa em duas faculdades: a capacidade de manipular o meio em que está inserido e a capacidade de comunicar simbolicamente.
Neste contexto, a singularidade seria definida pela existência de alguma mudança substancial em qualquer uma dessas duas faculdades. Ou seja, os eventos que frequentemente interpretamos como marcos da história, como por exemplo, guerras, revoluções, mudanças de regime, ascensão e quedas de impérios, ou eventualmente atos associados a proeminentes personalidades, devem ser considerados como as oscilações do curso da história, ou no limite, como reverberações de transformações mais profundas.
Contrariamente, os saltos qualitativos na evolução do conhecimento que confere ao indivíduo competências para manipular o meio ambiente, ou seja, a capacidade humana de controlar a natureza, como por exemplo, aprender a controlar um fogo, a invenção da agricultura, a descoberta dos metais, a revolução industrial e atualmente o surgimento das tecnologias de informação e comunicação, significam mudanças estruturais na organização social das sociedades que condicionam a forma como o indivíduo interpreta a realidade.
Mudanças na outra faculdade, a capacidade de comunicar simbolicamente, que ocorrem com menos frequência, serão porventura mais importantes, uma vez que a comunicação serve de base a tudo o que é especificamente humano. Qualquer inovação na capacidade de comunicar terá necessariamente um impacto maior na cultura intrínseca a determinada comunidade.
No entanto, as transformações na capacidade dos seres humanos comunicarem entre si ocorreram apenas em algumas ocasiões, cuja influência sinalizou as principais mudanças no curso da história da humanidade. De facto, tem sido enfatizado por alguns historiadores que o sucesso do ser humano no povoamento de todo o planeta resulta da primeira grande transformação na capacidade de comunicar, ou seja, o advento da linguagem. Em alguma literatura é defendida a tese de que a grande expansão humana no paleolítico, que levou a espécie humana das savanas africanas para toda a superfície do planeta, foi impulsionada pelo surgimento de línguas faladas semelhantes às que hoje utilizamos para comunicar. Posteriormente, o advento da escrita constituiu-se como a transformação seguinte na capacidade de comunicação dos seres humanos e mais um marco na história da humanidade. Efetivamente, a invenção da imprensa marcou o início da era moderna. Mais recentemente, o crescente poder das massas, que dá à idade contemporânea uma identidade própria, evoluiu paralelamente à existência dos media tal como os conhecemos na atualidade.
Seguindo esta linha de raciocínio, a questão que emerge é a de se estamos hoje num momento comparável. É claro que ao longo dos anos temos tido vários meios disponíveis para trocar informações: a televisão, o telefone e até o serviço postal. No entanto, a perspetiva tecnológica talvez não seja a mais adequada para compreender as diferenças essenciais entre as diferentes formas de comunicação. Porventura será preferível recorrer a uma espécie de análise topológica que permita classificá-las de acordo com a forma como a informação flui nas sociedades onde existem.
Até recentemente, essa classificação incluía apenas duas categorias básicas. A primeira, caraterizada por comunicação individual, correspondia a uma topologia linear que também incluía comunicação oral, suportada pelo telefone, telégrafo e o serviço postal. A segunda categoria, composta por uma topologia em forma de árvore na qual um único emissor procura que a sua mensagem atinja um público mais amplo possível, incluiria a imprensa escrita, os livros, o rádio e a televisão.
Todavia, a evolução tecnológica fez emergir um conjunto de novas ferramentas para gerar e transmitir informações, criando um cenário totalmente diferente dos acima referidos. Por um lado, atualmente temos disponível uma rede composta por centenas de milhões de ligações permanentes e de alta velocidade, à qual está ligada uma infinidade de dispositivos, constituindo-se num sistema que é dotado de potencialidades únicas, ou seja, com uma capacidade de fazer fluir informação incomparavelmente superior a tudo o que existia até então. Por outro lado, está em curso um processo de convergência tecnológica que está a tornar a complexidade subjacente ao sistema cada vez mais transparente para os utilizadores, que tendem a integrar uma ampla gama de serviços em todo o seu quotidiano, desde o profissional e público até ao mais privado.
É neste enquadramento que surge uma nova categoria na classificação topológica da comunicação humana, caraterizada pela comunicação de todos para todos, associada a uma rede complexa. Estamos perante uma verdadeira revolução comparável ao advento da fala, da escrita ou da imprensa que, na realidade, está a transformar o mundo ao nosso redor. Fisicamente, a dimensão labiríntica e turbulenta do nosso mundo em mudança acaba por se sustentar numa nova forma de gerir a complexidade, que só é possível graças à existência de máquinas dotadas de grande capacidade de processar informação e, sobretudo, de a trocar automaticamente com humanos e entre os humanos. Este cenário emergente molda o esqueleto funcional da estrutura financeira do mundo, da logística que possibilita a globalização e dos novos procedimentos de disseminação de ideias e interação entre as pessoas. Os seres humanos são os protagonistas de um momento excecional, fulcral na evolução da espécie, que nos leva a poder assumir que estamos no alvorecer de um novo período da história da humanidade, que poderá vir a ser designado por segundo tempo moderno.
João Calado
(Professor Coordenador Principal do ISEL)
(ex-Vereador do PSD)