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A inflação já todos sabem o que é, e o vulgo tem mais ou menos a ideia que inflação é quando os preços de venda ao público sobem, de forma generalizada, em consequência do aumento dos custos dos factores de produção. Exclusivamente.
No passado existia outro factor com directo impacto nos preços que era a desvalorização da moeda, mas como a politica monetária já não passa pelos governos da europa, este “culpado” não se aplica. Mas, quando os preços de venda ao público sobem, sem que tal esteja directamente ligado aos custos dos factores de produção, mas sim devido a outros motivos, designadamente, o incremento de lucros, à boleia de um bode expiatório, como é a inflação, aí já estamos no domínio da especulação.
Foi o que aconteceu, por exemplo, quando da transição do escudo para o euro, onde à boleia da paridade de 1 euro, para 200,4 escudos, houve um generalizado aumento de preços, á boleia do bode expiatório da transição para a nova moeda.
Hoje, após a crise da pandemia, logo seguida por uma guerra á nossa porta, assistimos a duas tempestades em simultâneo – uma inflação, somada á especulação alarve, afectando, sem cerimónias, a população portuguesa.
Quando a especulação nos mercados, sobretudo notada nas grandes cadeias de distribuição, quiçá um dos melhores negócios que existem porque baseados numa ideia simples – alugar prateleiras – os serviços de fiscalização como a ASAE, focaram-se neste epifenómeno.
A ASAE depressa identificou práticas grosseiramente ilegais, que o incauto consumidor não se dava conta. Exemplos vários: ora são preços em folheto, menores que os da prateleira, ora são preços na prateleira menores que os pagos na caixa registadora, ora é a pesagem registada no produto, diferir da pesagem paga pelo consumidor, com prejuízo para este obviamente. Haverá outras? não sei, foram pelo mesmo estas as propaladas na comunicação social. Quanto a saber se os aumentos de preços ao consumidor, nas prateleiras da distribuição são acima do normal, isto é, se o preço do produtor não é o único factor do aumento do preço das prateleiras, ainda não há elementos suficientes para o apurar de forma pública, mas a desconfiança aí está.
As cadeias de distribuição praticam uma regra pouco conhecida pelos consumidores, quando o produtor coloca nos armazéns da distribuidora os seus produtos, paga um “x” para esse efeito, mas para além disso o produtor tem de deixar um acréscimo de 10% do produto, a título de “quebras e outras situações de armazém”. Dito de outra maneira, o produtor paga á distribuidora para colocar 500 kg de arroz (por exemplo), mas tem de entregar 550 kg, pelo preço de 500kg. Pergunta-se o que faz a distribuidora com os remanescentes 50Kg? Não os dá ao banco alimentar, quando ciclicamente fazem recolhas de alimentos ás entradas destas distribuidoras, porque quem o faz são os clientes. Outra pergunta, quiçá mais importante, essas perdas ainda se cifram nos 10% ou aumentou também? Como se vê a distribuidora nunca fica a perder.
Qual foi a reacção, em particular, do Presidente da Jerónimo Martins? Ficou fulo de raiva, por ver a ASAE cumprir a missão para que foi criada, acusando o governo de utilizar esta força inspectiva como marketing de imagem, instrumentalizando-a.
É como os traficantes de droga acusassem o governo, por usarem a marinha portuguesa que lhes está a dar um rombo nas lanchas voadoras, no algarve, prejudicando-lhes o negócio.
Numa Conferencia de imprensa dada pelo Presidente do grupo Jerónimo Martins, dono do “Pingo Doce” e “Recheio”, com presença em Portugal, Polónia e Colômbia, a petulância assumiu foros de escândalo, com o senhor a afirmar que muitos lhe perguntavam porque ainda tinha operações em Portugal, como se nós portugueses tivéssemos de lhe agradecer por estar aqui a ganhar dinheiro á nossa conta, sim porque que se saiba, eles não dão nada de borla, o consumidor paga tudo.
Ainda escarrou a frase que a Polónia e a Colômbia perfazem cerca de 80% das operações do grupo, como que esbofeteando os portugueses com um “não preciso de vocês”.
Vejam bem a diferença deste “Patrão” com a de um verdadeiro empresário como foi Rui Nabeiro, que ao contrário do grupo Jerónimo Martins nunca sedeou o grupo na Holanda onde o regime fiscal é mais atractivo, beneficiando a Jerónimo Martins os holandeses, em matéria de impostos, em detrimento dos portugueses, que lhe compram os produtos, permitindo a este senhor da Jerónimo Martins lucros na casa das várias centenas de milhões de euros.
Mas cuidado, o senhor ainda foi mais longe ao afirmar que a inflação é o pior “imposto” que se pode infligir ao consumidor. Ora um “imposto” é um instrumento fiscal do Estado, pelo qual é exclusivamente responsável. Dizer que a inflação é um imposto, é o mesmo que dizer que a inflação é responsabilidade do estado, no caso do governo.
O senhor patrão conhece bem a técnica do espelho/projecção, que é projectar, no outro, uma característica própria. Pretende-se enganar o povo obviamente.
Mas o homem estava “on fire”, e disparou que bom mesmo seria o governo passar o IVA dos produtos alimentares para 0%.
Esta solução, soçobrou em Espanha e noutros países, e mesmo entre nós foi o que se viu quando o IVA da restauração passou de 23% para 6%, o resultado foi … um maior encaixe de lucros da restauração, porque o consumidor não viu nenhuma baixa nas refeições. Não resulta.
O homem chega mesmo a defender que se deveriam abolir todos os impostos … ora não estou a ver como Portugal, País sem petróleo, nem recursos energéticos para vender a outros países, poderia assegurar as funções sociais do estado, da educação á saúde, á justiça, e á segurança, sem uma cultura de imposto, a não ser que o grupo Jerónimo Martins se proponha fazer isso em vez do estado.
Não deixa de ser sobranceiro quando um agente económico pretende que o estado prescinda da sua parte (impostos), mas a parte do agente económico (lucros) manterem-se. Sim porque o que este senhor não diz é que quando as grandes distribuidoras recebem os produtos dos produtores, em cima do preço do produtor, aplicam a sua margem, normalmente é de 100%, significa pois que o produtor tem o trabalho todo, e fica com margens esmagadas, quase nada ganha, a grande distribuição, sem esforço nenhum ganha 100%, a que se junta, como acima expliquei, a obrigação do produtor entregar 10% mais a titulo de perdas de armazém. Onde pára a moralidade disto? De algum vem os 700 milhões de lucros do grupo.
Mas a créme de la créme, já depois de o senhor patrão chamar mentiroso ao ministro da economia,saiu na edição do Público de 25 de Março de 2023, na primeira página, lá vem uma deste senhor patrão ”IVA zero é possível se governo se tornar honesto” dito de outra forma – o governo é desonesto, e reitera, ao longo da sua entrevista, a desonestidade do governo, do ministro, com um desassombro que roça a estupefacção.
Na boca deste patrão o ministro da economia é um mentiroso, e o governo é desonesto. Hein? Como é possível um agente económico sentir-se tão á vontade para verberar uma atoarda, um apodo, deste calibre? Ainda por cima um agente económico com telhados de vidro. Isto não pode valer tudo. Não pode.
Estou certo que se o Presidente do grupo Jerónimo Martins dissesse semelhante coisa na Polónia sobre o governo polaco, lhe seria aplicado a tristemente célebre frase africana “ vous avez 24/20”, que é como quem diz, “tens 24 horas para te pores daqui para fora, e podes levar 20 kilos de bagagem”.
Quando esta clique de gente, sentada nos seus milhões, o grupo Jerónimo Martins em 2022 teve 570 milhões de lucro, segundo se noticia, se arroga tratar o governo, apesar de tudo, goste-se ou não, representantes do povo, seu cliente, como se servos da gleba fossem, e a sua verbe, qual chicote no lombo do vilão, vomita uns soud bytes para rapaziada ver quem manda, então estamos próximo do fim.
Vem-se a saber mais tarde que este senhor ganhou em, ordenados, em 2022, cerca de 3 milhões e meio de euros, o equivalente ao ordenado de 3.000 funcionários seus, e depois distribuiu por todos os funcionários o equivalente a 3% dos lucros da empresa. Acha-se, pois a ultima bolacha do pacote.
Belmiro de Azevedo, tido como um empresário de excepção, mas cuja história não o abonava, ficou conhecido por frases como “não queria nenhum destes ministros como meu funcionário”, dava-se a este tipo de dislates, sem que ninguém o incomodasse.
Já Jo Berardo deu-se mal, quando resolveu ir á Assembleia da República “gozar” com os senhores deputados, e a vida rapidamente lhe começou a correr mal, não porque o perseguissem, mas porque chamou á atenção das sus acções, as quais objecto de escrutínio, evidenciaram artimanhas á margem da lei.
Quando se diz que ninguém está acima da lei, parece que estes patrões partem do princípio que isso só se aplica aos políticos. Estão enganados.
Mais educado esteve, por exemplo Gonçalo Lobo Xavier, presidente da associação das distribuidoras, no dia em que o governo anunciou um pacto com eles e com a CAP, e instado por jornalista a dizer se ainda estava zangado com o ministro da economia, que não estava zangado com ninguém, apenas deu nota da errada percepção para que teria contribuído o ministro da economia, para a responsabilidade das distribuidoras nos aumentos de preços, na sua opinião errada.
De resto essa “errada” percepção antes do ministro já toda a gente a tinha.
A verdade mesmo é que os consumidores desconhecem em absoluto, os pressupostos da formação de preços ao consumidor, porque nem os produtores, nem a distribuição disponibiliza essa informação..
Seria da maior utilidade perceber se sim ou não, este galopar de preços ao consumidor radicam em mera inflação, e sendo esta na casa dos 7%, 8%, o excesso do preço ao consumidor, não podia ser superior a isto, ou se, pelo contrário, a especulação, no sentido em que quem estabelece o preço ao consumidor se aproveita ilicitamente da inflação.
Para isso teria de se escrutinar os custos reais de produção, ou seja, saber mesmo quanto custa ao agricultor cultivar uma alface, a margem de lucro quando a vende á distribuição, e avaliar a margem de lucro da distribuição.
Mas o mercado, a mão invisível de adam Smith, base do capitalismo é isto mesmo, os consumidores ficarem reféns dos tubarões que dominam o pedaço. Por estas e por outras, talvez não seja despicienda a ideia de colocar o Estado a também operar no mercado, corrigindo assimetrias inaceitáveis, e no caso concorrendo com a distribuição, garantindo que os preços não são especulativos.
Claro que os agricultores também podiam organizar-se em cooperativas que colocassem no mercado os produtos dos mesmos, sem intermediários. Dir-se-á que já existem muitas cooperativas, o problema é que estas apenas servem para colocar no distribuidor (nas Jerónimos Martins cá do sitio) e não no cliente final, o produto daquilo que produzem. Não serve.
Uma outra forma de “castigar” estes patrões ufanos, é fazer como em certos países, com uma percepção pública muito afinada, e em linha com a responsabilidade social, com tudo o que isso importa, que sancionam certas práticas com um boicote generalizado a determinado produto, marca ou empresa, forçando-a a conformar-se com o consumidor e não o contrário. É o caso dos estados unidos da américa, e não só.
Um boicote generalizado por parte dos consumidores portugueses ao “Pingo Doce “ e ao “Recheio”, embora representem “apenas” 20% das operações do grupo, certamente punha-os a pensar que se calhar não compensa ser sobranceiro. Dir-se-ia que se tal acontecesse, milhares iriam para o desemprego, pois parece que o grupo emprega 3 a 4 mil pessoas, mas basta pensar que se os consumidores abandonassem o grupo Jerónimo Martins, estes iriam bater á porta de outras distribuidoras, e estas perante tal procura, iriam precisar de reforçar a sua força de trabalho, e absorver a disponibilidade possibilitada pelas dispensas do Jerónimo Martins.
Acredito que em alguns Países europeus o sistema até funcione assim, como acontece no continente americano, em Portugal já tenho algumas dúvidas, pois ainda me lembro aquando da questão timorense, houve alguns pretextos para boicotar a Indonésia, como foi o caso da reparação de motores de aviões da Indonésia, em Alverca, e a “porrada” que o ministro Fernando Nogueira levou na altura, mas por exemplo mesmo na época, sabendo-se que a BP (British Petrolleum) tinha uma participação do governo indonésio, não vi ninguém deixar de se ir abastecer às bombas da BP a fim de participar num boicote ao País que invadira e escravizara Timor Leste.
Nessa altura, a instâncias de alguém com quem trabalhei de perto, o Professor Nuno Rocha, então conhecidíssimo pró-indonésio, tentou-se trazer para o jardim Zoológico de Lisboa um Dragão de Komodo, uma espécie de lagartão enorme, autóctone da ilha de komodo, na indonésia, e na altura isso espantou-me dado o sentimento profundamente anti-indonésia que havia em Portugal, e comentei isso com ele, e ele disse-me “esteja descansado que ninguém deixará de visitar o bicho só porque vem da indonésia, não em Portugal”. Como a tentativa se gorou, por indisponibilidade de Portugal em receber o dito, fiquei sem saber se ele tinha razão, ou não.
Mas que a exigência de uma Responsabilidade Social, faz muita falta disso não restam a menor das dúvidas.
Finalmente a 27 de Março de 2023, o governo lá faz a vontade à CAP e às distribuidoras, de instituir o IVA zero para um cabaz de produtos essenciais, ficando a sensação que resultou a pressão para este resultado.
Assim que foi anunciado com pompa os esforços feitos pelos protagonistas, e no qual o estado abdica da sua parte (impostos), mas a CAP e a distribuição (aah, o presidente da jerónimo martins deve estar a esfregar as mãozinhas) mantêm a sua parte de milhões de lucros, as vozes que clamavam por esta solução, mormente entre os partidos, de que se destaca o PSD pela voz de Montenegro, vêm agora clamar por ser tardia e insuficiente (é o síndroma do copo de água) e não vai resolver nada, os produtores de bens que ficaram fora do cabaz, reclamam sentindo-se preteridos injustamente, e o povo … esse tem a percepção de nada beneficiar com a solução.
Aguardemos …
Oliveira Dias, Politólogo