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Se dúvidas houvesse sobre o obscurantismo do “politicamente correcto”, ei-las agora desfeitas em todo o seu esplendor, tendo por vitima, as obras de Enid Blyten, a criadora dos imortais “Os Cinco” e os “Os Sete”, cujas aventuras encheram as fantasias de muitos jovens, incluso o autor destas linhas, na sua juventude.
Tudo porque as editoras dessas obras decidiram reeditar as mesmas adaptando-as ás “novas” realidades, compagináveis com a ideologia de género, e diversos tipos de “ismos” removendo expressões e palavras tidas por inadequadas aos novos tempos, a fim de não ferir patéticas sensibilidades.
Sem que o vulgo desse conta tudo começa com o disparate de grafar palavras com um símbolo identificador de ambos os sexos (géneros como agora se diz) refiro-me ao @, assim por exemplo se alguém escrever algo como “camarad@s” parte-se do princípio que o vocábulo substitui ambos os géneros. Um disparate pegado.
Depois tivemos a mulher do nosso segundo Nóbel, no caso da literatura, Saramago, que se arrogou a legitimidade de proclamar que quando uma presidência é exercida por uma mulher, ela deve ser referida como “Presidenta”. Uma espanhola, pontapeando a língua portuguesa.
Logo a seguir vem a ideologia de género defender que sexo masculino e feminino são construções sociais, cujo abandono deveria dar lugar a género masculino e feminino, e, pasme-se, começaram a pôr em causa livros escolares, por não respeitarem a paridade entre imagens ou fotos de género masculino com o feminino, presentes nas obras em causa.
Isto vai ao ponto de até as estátuas de Miguel Ângelo serem consideradas demasiado nuas, para a hipersensibilidade actual.
Já para não falar da bizarra situação de uma peça de teatro ter sido interrompida por alguém que se diz trans, qualquer coisa, insurgindo-se contra um dos actores cujo papel trans, sem que o fosse, afecta-se a sensibilidade da dita. E não faltam exemplos de actores caucasianos a fazer vozes em filmes animados de pessoas negras, e coisas do género, sendo, por isso objecto de censura.
Perante estas pérolas, do esforço de unicidade global, o que nos trás á memória tudo isto?
O Concilio de Niceia, o primeiro concílio ecuménico, realizado no ano 325 D.C., realizado entre 20 de maio e 25 de Julho, na Turquia, precisamente na cidade de Niceia da Bítinia, hoje conhecida pro Iznik, na província de Anatolia, próximo de Constantinopla, convocado pelo Imperador Constantino, que se teria convertido á religião cristã, segundo se crê, acedendo a uma sugestão do então Bispo de Córdova, Ósio, contando com o beneplácito do Papa São Silvestre.
Ora este concílio não foi inocente e pretendeu harmonizar (dito de outra maneira, impor uma única visão, unificar), sobre o cristianismo, uma vez que existiam e proliferavam várias “versões” de cristianismo, das quias o Arianismo era o que mais assustava.
Aos cerca de 300 e poucos Bispos, presbíteros e diáconos, participantes oriundos de todo o mundo (Ásia-Menor, Palestina, Egipto, Síria, etc), foi pedido que portassem consigo os manuscritos que estivessem na sua posse, com os ensinamentos dos vários apóstolos, pois que também os havia em quantidade, e cada qual com a sua versão dos factos e da vida de Jesus, em certos casos com versões antagónicas.
O resultado deste Concilio foi estrondoso, por um lado institui uma igreja única, Cathólicus (do grego significando universal), e portanto se universal, não deveria haver espaço, na fé cristã, para mais nenhum ramo da cristandade, obliterando o Arianismo (objectivo primacial), e posteriormente e sucessivamente, o Catarismo, (este ramo cristão foi objecto de genocídio através de uma cruzada convocada especificamente com esse objectivo, tendo sido chacinados cerca de 200 mil cristãos cátaros no languedoc francês, e até o nosso D. Afonso Henriques, aquando da conquista de Lisboa, cortou a cabeça do Bispo Cátaro, que havia na cidade então, para agradar ao Santo Padre) o nestorianismo, os Priscilianos (estes de origem Ibéricas), os Coptas (ramo que se terá mantido puro, na Etiópia, figurando no lugar cimeiro da lista de prioridades do nosso Infante D. Henrique, na sua demanda dos descobrimentos) , e por aí fora. Então, tal como hoje, a imposição de uma única voz, uma única verdade, uma única visão, sem aceitar oposição, intrinsecamente fundamentalista.
Mas a “créme de la créme”, em Niceia, foi a selecção então feita dos manuscritos a introduzir num único livro, a Bíblia sagrada, apenas sendo considerados os manuscritos de 4 apóstolos, todos os demais, por não se “encaixarem”, as respectivas versões, no dogma escolhido, em construção naquele Concílio, foram lançados á fogueira, consolidando-se, assim, a visão unipolar da religião. Tudo em grego, a língua franca da época, para além do aramaico, língua dos profetas cristãos.
A versão Latina vem mais tarde, dada a necessidade de melhor se evangelizar o vulgo (o povo) e é com o Papa D. Dâmaso, em 383, o tal Papa que terá nascido nos arrabaldes da nossa cidade de Guimarães, que incumbiu São Jerónimo de traduzir a Bíblia do grego para latim, ficando conhecida como a “Vulgata” (do latim Vulgar, a língua que o povo falava), e que lhe terá levado cerca de 40 anos a traduzir.
Tudo a bem, daquilo que hoje se classificaria como “politicamente correcto”, versão única, dogmática, significando que não é passível de questionamento, sob pena do apodo de negacionismo. Isso, hoje, é-nos tão terrivelmente familiar.
Mas não ficamos por aqui, o controlo das massas é importante, e se hoje é feito por recurso a vários estratagemas, na época era mais simples, bastava colocar as publicações consideradas heréticas, numa lista de livros a banir, ficando famoso o Índex, Index Librorum Prohibitorum, o índice dos livros proibidos, pela Igreja Católica Apostólica Romana, editado pela primeira vez em 1571, cuja violação, leitura e até a mera posse, cominava a excomunhão, tendo subsistido até 1962-1965, por alturas do concilio vaticano II, passando então a ser apenas desaconselhada a leitura dos livros ali registados.
Com o advento da máquina de imprensa, a igreja católica passou a obrigar a uma licença especial para a posse de uma destas máquinas e imprensa de livros, de modo a poder controlar mais facilmente a disseminação de obras, algo considerado indesejável, agora bastante facilitada, com a máquina de Nuremberga (consta-se, de resto, que D. Manuel I, contrariando as regras da igreja católica, enviou uma máquina dessas ao Negus da Etiópia, sem pedir essa licença, tendo sido a primeira máquina de impressão no continente africano).
Mas na actualidade ainda está bem presente a destruição de património histórico de valor incalculável levada a cabo pelo Daesh, em Palmira, na Síria, á semelhança de idênticas práticas no Iraque, numa vã tentativa de impor a “sua” verdade.
Quem não se lembra, recentemente, da onda de “apagão” histórico que a barbárie, ignota, e imberbe, promoveu com a destruição de estatuária daquilo que consideravam símbolos dos “opressores”, “negreiros” e outros, assim apodados, onde se incluem figuras maiores desde Cristóvão Colon, ao Padre António Vieira, e claro, pelo meio figuras menores como ditadores e outros estadistas, cuja “marca” marcou indelevelmente os respectivos povos.
Este afã de cercear a actividade criadora do género humano, esta vontade de extermínio da liberdade de criar, a intolerância do outro, desde que diferente de “mim”, o revisionismo histórico, cultural, social, religioso, que perpassa a nossa sociedade, numa tentativa grotesca de apagar a memória colectiva, e até a individual, substituindo-a, por outra, aproxima-nos, cada vez mais, da estupidificação animal.
Ontem o índex, hoje as editoras alinhadas com o “politicamente aceite”, proibindo leituras e punindo a simples posse, canibalizando obras originais, respectivamente, é bem demonstrativo do “império” da visão única, do mundo unipolar, que rejeita tudo quanto se lhe não conforme em toda a linha.
A mais recente é-nos trazida por um autor português, Afonso Reis Cabral, vencedor dos prémios “Leya” e “José Saramago”, Presidente da fundação Eça de Queiroz, de quem é trineto, com a recusa de uma editora norte americana de publicar duas obras suas, “O meu irmão” e “Pão de Açúcar”, esta, com base na condição de “cisgénero” (alguém que se identifica com o seu género) do autor, versando parte dela na história de uma “transgénero”, e que, segundo a editora, poderia vir a ferir susceptibilidades do seu público.
Embora “roído” de inveja por não me poder comparar a este brilhante autor português, passei por uma situação um pouco semelhante, também com o continente americano, mas mais para sul, concretamente o Brasil. A história conta-se rapidamente: Na minha primeira deslocação ao Brasil, a convite de um amigo, na época, destacado deputado estadual do Rio Grande do Sul, propus a publicação de uma obra, elaborada a duas mãos, com um colega, no âmbito de uma pós-graduação em Marketing politico, tendo em vista o vasto mercado que existente no Brasil, para este tipo de temática. Proposta aceite, e regressado a Portugal, enviei, como combinado, a dita obra ao gabinete do deputado, a fim deste o fazer chegar a uma editora, previamente contactada.
Quando uns dias depois a chefe de gabinete me telefona para dar conta dos detalhes e custos de edicção da obra, qual não foi o meu espanto, perante o item “tradução”, tendo-me garantido a Ivette (a chefe de gabinete do deputado) “Antônio, nóis não entende o que tu escreve não, parece brincadeira mas vai ter de traduzir mêmo…”, e por aqui se ficou a “aventura” editorial brasileira.
Parafraseando uma articulista do “Público”, Maria João Marques, no seu texto do dia 5 de Abril de 2023, página 9 “A pior consequência destas decisões editoriais e comerciais nem é o atentado que fazem á produção artística e literária. É a vontade de exterminar o debate. De não admitir conversa”
Subscrevo, claro.
Oliveira Dias, Politólogo