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As Unidades Curriculares que constituem os cursos ministrados nas instituições de ensino superior devem procurar dar resposta aos anseios intelectuais da população estudantil dotando-os das competências que a sociedade em geral espera que possuam quando são diplomados. Por exemplo, se fosse feito um inquérito aos alunos de cursos incluídos no que vem sendo designado por educação STEM, ou seja, cursos estruturados com base em quatro domínios do conhecimento fundamentais, “ciência, tecnologia, engenharia e matemática”, perguntando-lhes se desejavam estudar e compreender a Teoria da Relatividade, certamente que ficaríamos surpreendidos com o número muito baixo de respostas positivas à pergunta em apreço.
A questão que se poderá colocar será a de se o número muito baixo de respostas positivas deverá constituir um motivo de preocupação. Ou colocada a questão de outra forma, porque deverá um aluno interessar-se em estudar física teórica? Esta situação poderá ser interpretada como normal, razoável, compreensível e em total consonância com o que hoje muitas vezes se exige ao sistema educativo, nomeadamente que produza o que as empresas e o sector produtivo de um país necessitam para contribuir para o progresso coletivo. Será natural que um aluno não aspire a estudar física teórica se não percecionar que as competências que irá adquirir irão ter valor acrescentado para a sua mobilidade ascendente no elevador social.
Na realidade, genericamente, as escolhas dos jovens nada mais são do que um reflexo das prioridades da sociedade. Constituem um indicador confiável porque revelam tendências gerais que, em alguns casos, ainda não foram postuladas sob a forma de discursos mais explícitos. Nesta conformidade, a falta de interesse em estudar física teórica ou outros domínios do conhecimento abstratos e complexos, supostamente com pouco valor acrescentado para a inserção dos diplomados no mercado de trabalho, acaba por induzir uma crescente inclinação coletiva para o pragmático e uma falta de interesse pelo conhecimento como um fim em si mesmo. Neste contexto, poderíamos também pensar que não há aqui nada de preocupante, não fosse o facto de existir uma clara contradição entre a realidade do mundo em que vivemos e um dos poucos discursos centrais dos dias de hoje, aquele que nos coloca no caminho para uma nova utopia chamada “Sociedade do Conhecimento”. Ou essa contradição não existe?
Naturalmente, a resposta a esta pergunta dependerá do significado que atribuímos à designação “Sociedade do Conhecimento”. Esta designação foi introduzida em 1969 por Peter Drucker, para designar um conceito específico, com fronteiras bem definidas. Drucker, um guru da gestão empresarial, dedicou um capítulo de seu livro “The Age of Discontinuity” à “Sociedade do Conhecimento”, no qual desenvolveu um conceito que já havia sido postulado por Fritz Machlup em 1962, então designado por “Sociedade da Informação”. Drucker, no seu livro, argumenta que “as coisas mais úteis, como o conhecimento, não têm um valor tangível”, afirmando que a relevância da aprendizagem se constitui como um fator económico da maior relevância para as sociedades, ou seja, Drucker introduziu o conhecimento na equação económica e mercantilizou-o. Drucker também deixou claro que o que é relevante do ponto de vista económico não é a sua quantidade ou qualidade, mas a sua capacidade de gerar riqueza, com o consequente impacto na produtividade dos países. Este foi, sem dúvida, um uso restrito do termo “conhecimento”, embora fosse totalmente apropriado dentro do contexto especializado da teoria económica, onde surgiram os conceitos de “Sociedade do Conhecimento” e “Sociedade da Informação”.
Na atualidade, mais de meio século depois, o termo “Sociedade do Conhecimento” disseminou-se muito para além do círculo restrito de especialista em macroeconomia para se tornar um lugar-comum. Os políticos utilizam-no frequentemente nos seus discursos para fazer emergir uma auréola de otimismo, os intervenientes nas atividades económicas mundiais recitam-no como um mantra para exorcizar os maus espíritos da globalização e o cidadão comum interpreta-o como o futuro desejável para o qual as novas tecnologias de informação e comunicação nos estão a conduzir. A “Sociedade do Conhecimento”, conceito que na atualidade vem sendo substituído por “Sociedade da Inovação”, está a tornar-se numa nova utopia, constituindo-se quase como a única expetativa coletiva que permite olhar para o futuro com algum otimismo.
É claro que a perceção imediata do potencial utópico subjacente ao conceito de uma “Sociedade do Conhecimento” reside na sua capacidade de nos fornecer respostas credíveis à primeira incerteza que a dinâmica do mundo atual nos coloca: os efeitos na economia, ou seja, os efeitos sobre o nosso bem-estar material. Neste contexto, não é fácil deixar de sentir alguma inquietação face à existência de empresas offshore, à invasão de produtos oriundos de economias emergentes, à concentração de atividades económicas nas mãos de grandes grupos, ao poder asfixiante dos mercados financeiros e à obsolescência de muitas atividades que, durante anos e anos, foram as geradoras dos recursos que garantiam a nossa prosperidade. A combinação de explicações globais com efeitos locais que afetam a nossa vida quotidiana faz-nos sentir como se estivéssemos sendo puxados por uma maré incontrolável. Ainda que os indicadores macroeconómicos sejam genericamente bons a nível mundial, sendo a prosperidade derivada dos processos de liberalização uma realidade, o facto de essa prosperidade não ter sido distribuída de forma equitativa não é negligenciável.
Para fazer face às incertezas que pairam sobre o futuro, abraçar a ideia de que a capacidade de gerar, administrar, difundir e aplicar adequadamente um fator tão intangível como o conhecimento, será certamente determinante para alavancar a modernização dos processos produtivos e de toda uma gama de novos serviços ainda por descobrir, com a eficácia suficiente para garantir acima de tudo o crescimento. Todavia, o uso massivo da tecnologia e o aumento substancial da eficiência produtiva deverá ser gradual e progressivo acautelando a coesão social na perspetiva de minimizar o número de pessoas excluídas dos circuitos geradores de riqueza.
É um fato inegável que muito do que Drucker postulou é uma realidade hoje. A tecnologia propiciou a emergência de uma “Sociedade da Informação”, organizada topologicamente como uma “Sociedade em Rede”, na qual o acumular de conhecimento se tornou num elemento crucial para a sobrevivência num mercado global muito volátil, em consequência de uma acelerada dinâmica de crescimento. Na atualidade, a “Sociedade do Conhecimento” nada mais é do que uma nova etapa do sistema capitalista de livre mercado, que aspira poder sustentar o crescimento, acrescentando um quarto fator aos sistemas de produção, o conhecimento, ao clássico trio: terra, trabalho e capital. Do ponto de vista do liberalismo democrático em que estamos imersos, não conseguimos vislumbrar alternativas credíveis à “Sociedade do Conhecimento”.
João Calado
(Professor Coordenador Principal do ISEL)
(ex-Vereador do PSD)