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O mundo contemporâneo em que estamos inseridos poderá ser catalogado como uma Sociedade de Aprendizagem Produtiva, em que a distribuição e o grau com que os seus membros assimilam esse conhecimento determinará até que ponto ela também será uma Sociedade do Conhecimento.
Inquestionavelmente, na atualidade somos confrontados com um certo tipo de conhecimento com baixo teor reflexivo, em consequência de passarmos incontáveis horas inundando os nossos cérebros com informações das TVs ou da Internet. Por outro lado, o conhecimento altamente especializado, ou necessário para realizar atividades tecnologicamente complexas, também está em ascensão em algumas pessoas. Mas o tipo de conhecimento que sustenta subliminarmente a utopia de uma Sociedade do Conhecimento, aquele que através da razão supostamente nos forneceria uma compreensão melhor e mais abrangente da realidade, está em declínio. Graças à tecnologia, vivemos numa Sociedade da Informação, que também acaba por ser uma Sociedade da Aprendizagem, mas não caminhamos para uma Sociedade do Conhecimento, mas sim no sentido inverso. As próprias tecnologias que articulam o nosso mundo de hoje estão-nos a transformar em indivíduos cada vez mais ignorantes. Mais cedo ou mais tarde, a miragem de hoje desaparecerá e descobriremos que, na realidade, caminhamos para uma Sociedade da Ignorância.
Ciente de que a palavra “ignorância”, o oposto de “conhecimento”, está carregada de conotações negativas, e que a mera sugestão de que ela possa estar no título do nosso futuro imediato colide frontalmente com a nossa fé no progresso, se a Sociedade do Conhecimento merece ser chamada de utopia, a princípio, a Sociedade da Ignorância soa como um discurso distópico.
Talvez seja, mas na realidade esse tipo de julgamento é injustificado. Não há espaço para reprovações, quando a situação não é resultado de uma escolha consciente baseada no exercício do livre arbítrio. A Sociedade da Ignorância é o inevitável corolário do mundo que construímos, ou mais precisamente, que gradualmente foi tomando forma ao nosso redor, porque mesmo sendo resultado das nossas ações, não é resultado da nossa vontade. Está a surgir como consequência lógica da nossa evolução e nada mais é do que as múltiplas faces da realidade em que vivemos, uma vez que num mundo hiperconectado pelas novas ferramentas tecnológicas, a nossa capacidade de acesso ao conhecimento está inexoravelmente condicionada.
Não há dúvida de que um dos aspetos mais característicos e representativos dos nossos dias é a velocidade. Entrámos numa nova era de dinâmica desenfreada, de crescimento acelerado, de obsolescência imediata de qualquer coisa nova, de proporções e formatos descomunais, que Gilles Lipovetsky chama de “Tempos Hipermodernos”: hipercapitalismo, hiperclasse, hiperpoder, hiperterrorismo, hiperindividualismo, hipermercado, hipertexto, etc. Não se trata apenas de rótulos ou prefixos. De facto, a evolução de muitas magnitudes que caraterizam o mundo atual encaixam perfeitamente ao longo de uma curva de crescimento cada vez mais íngreme que está a aparecer frequentemente na natureza: a função exponencial. Quanto maior a magnitude, mais rápido ela cresce, como uma bola de neve imparável. Assim é o nosso mundo hoje, pelo menos até chegarmos aos limites que a física do planeta impõe. Os tempos hipermodernos também podem ser designados por tempos exponenciais.
E onde este comportamento é mais acentuado é, sem dúvida, no volume de dados que produzimos, processamos, enviamos e armazenamos. A informação sobre qualquer assunto acumula-se à nossa volta a um ritmo exponencial graças às contribuições de milhões de pessoas que, incansavelmente. carregam na rede que nos envolve, desde simples fotografias digitais a profundas reflexões sobre qualquer área do conhecimento. Um universo de ecrãs eletrónicos permite-nos aceder a tudo isto instantaneamente, de tal forma que enquanto indivíduos assistimos a um alargamento constante da parcela de realidade que cada um de nós pode abarcar. Estamos cercados, inundados por todo o tipo de informação: podemos saber se está a chover no canto mais remoto do planeta, encontrar a letra da nossa música favorita em questão de segundos ou obter as especificações técnicas de qualquer dispositivo. Quando conhecemos alguém, procuramos referências sobre essa pessoa na Internet. Podemos observar o estado do gelo na Antártida, folhear todos os livros do mundo antigo ou ouvir as opiniões mais reputadas. Tudo à distância de um “click”.
No entanto, paradoxalmente, esta realidade emergente, em vez de nos permitir compor uma visão cada vez mais abrangente e precisa do mundo em que vivemos, mostra-nos o mundo de uma forma mais caótica e desconcertante do que nunca. A um passo da agorafobia, a expansão do horizonte de nossa visão mostra-nos uma realidade complexa e em constante mudança que somos incapazes de compreender. Na prática, as informações disponíveis e a aprendizagem cumulativa estão a tornar-se totalmente inapreensíveis para uma mente humana que, afinal, ainda está limitada pelas nossas restrições biológicas originais.
A impossibilidade de apreender o conhecimento disponível, obviamente, não é nenhuma novidade em si mesma. Após a invenção da imprensa, qualquer biblioteca continha muito mais livros, muito mais conhecimento do que um indivíduo poderia aspirar a ler em toda a sua vida. No entanto, a estrutura da biblioteca manteve uma certa estabilidade. Os processos associados à atual dinâmica de acumulação exponencial do conhecimento são diferentes. Hoje encontramo-nos numa nova biblioteca onde se acrescentam constantemente novas salas dedicadas a novas disciplinas, que rapidamente se enchem de volumes e que mal temos oportunidade de visitar, apesar de estarem disponíveis em qualquer lugar do mundo e a qualquer momento.
João Calado
(Professor Coordenador Principal do ISEL)
(ex-Vereador do PSD)