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Há um clamor internacional, com inusitadas repercussões em Portugal, provocado pelas palavras do chefe de Estado da República Federativa do Brasil, proferidas na China, sobre as “responsabilidades” da Nato/EUA e União Europeia, na guerra que grassa entre a Rússia e a Ucrânia.
O “status quo” ocidental impôs uma narrativa única, demonizando todas as demais que se lhe oponham, obrigando os países soberanos, não integrantes da NATO, a “obedecerem” ás sanções unilaterais, determinadas pelos países que integram a NATO, acompanhados pela Austrália, e um ou outro país.
De tal maneira que, os cidadãos do país agressor, nesta guerra, a Rússia, são ostracizados, pelos actos praticados pelos governantes do seu país, algo semelhante ao que os EUA fizeram com cidadãos nipónicos, após a derrota do Japão, na sequência do lançamento de duas bombas atómicas americanas sobre Hiroxima e Nagasaki, perecendo cerca de 300 mil almas inocentes, em poucos segundos, forçando a rendição do Japão, e a sua completa submissão, incluso o imperador, tendo-se tornado o Japão imperial um protectorado americano, com um governador americano todo poderoso.
Melhor sorte tiveram os alemães e os italianos, cujos cidadãos não pagaram as “favas” dos seus ditadores, em especial a Alemanha a quem foi apontado o extermínio de 6 milhões de judeus.
As variáveis deste problema são muitas, e a dinâmica entre elas é acelerada ou desacelerada em função, não da justiça internacional ou falta dela, mas de interesses egoístas de cada País, ponderado sempre em função de conjunturas, politicas, económicas, monetárias etc.
Num dos artigos por mim escritos nesta coluna abordei já, baseado na minha convicção e nada mais, o papel determinante que o Brasil pode vir a ter como mediador neste conflito, não só pela sua inclusão num poderoso grupo internacional, os BRIC, (Brasil, Rússia, India, e China), como no potencial endógeno, como País, em muitos produtos, onde é o maior produtor mundial, e em matéria de dependências são poucas as que tem, por outro lado o povo brasileiro tem um ADN muito português, o mesmo ADN tão apreciado por todos os povos por onde Portugal vai prestando elevados serviços humanitários, ou integrados em forças de paz.
O português tem um “savoir faire” universal, e o brasileiro, consanguineamente também o tem, a uma escala muito maior, logo com mais relevância.
As pressões dos países da NATO sobre terceiros “não alinhados” é enorme, e veja-se como a China tem sido pressionada a tomar partido, contra o agressor na guerra da Ucrânia.
Também o Brasil tem sofrido pressões idênticas. Lembremo-nos quando Jair Bolsonaro, anunciou uma visita á Rússia para se encontrar com Vladimir Putin, antes de 24 de Fevereiro de 2022, e as pressões que a “entourage” de Jo Biden colocou sobre o palácio do planalto em Brasília, “desaconselhando” tal deslocação. A resposta do então Presidente da República Federativa do Brasil, foi que quem decidia os países que visitaria era ele e o seu governo, e não Washington, e adiantou mesmo que faria idêntica visita a Jo Biden caso ele o convidasse para tal. O Brasil não é um qualquer país europeu.
Pensou-se, e os americanos, não só nisso acreditavam, como até o ansiavam, de que com Inácio Lula da Silva seria diferente … .
Os mais distraídos não deram conta de um vídeo com uma entrevista a Dilma Roussef, nas redes sociais brasileiras, após o espoletar da “operação militar especial”, um eufemismo para designar a guerra, onde a ex-presidente do Brasil, explica a sua perspectiva dos acontecimentos: Com o alargamento da NATO a leste, logo após a queda do Muro de Berlim, embrião da queda da União Soviética e concomitantemente do Pacto de Varsóvia, a Rússia, confinada ao seu território, já sem as demais republicas socialistas soviéticas, viu a NATO abeirar-se das suas fronteiras, causando fundado receio sobre esse avanço, agravado com a indiferença do “ocidente”, um eufemismo para designar os países NATO, perante o crescente incómodo de Putin, publicamente manifestado, “olhos nos olhos” num encontro internacional, perante o ar condescendente dos representantes de outros países, a não darem nenhuma importância aso protestos de Putin, perante a ameaça da aproximação da NATO das suas fronteiras. Recorde-se, “en passant” que em 2008 Mário Soares pulicou um artigo chamando á atenção para a insensatez da NATO e o perigo em insistir na provocação do alargamento a leste. Premonitório.
Mas voltando a Dilma, ela passa em revista o golpe de estado na Ucrânia de 2014, cuja consequência foi o derrube do governo democraticamente eleito, mas alinhado com a Rússia em detrimento da União Europeia, motivando manifestações violentas, onde até se podiam ver membros do governo americano marchando contra o governo ucraniano.
Com os revoltosos a terem ganho de causa, o Presidente ucraniano pôs-se em fuga, para a vizinha Federação Russa. Os povos falantes de Russo, habitantes das regiões mais afastadas de Kiev, viu serem-lhes retirado o direito de voto, e a perderem direitos de cidadania, e perseguidos, sendo o corolário dessas acções, a formação de milícias armadas, contra Kiev, autodeclarando a independência.
A Crimeia, assume uma importância decisiva, pois ali estava estacionada a mais importante base naval da Rússia, para além de ser geo-estrategicamente um ponto quente. Ainda por cima um território que fora desafectado do território russo por Krutchov, Presidente do politburo da URSS, dizem num momento de bebedeira, e adicionado á Ucrânia. Não se sabe se a circunstância de Krutchov ser ucraniano teria influenciado a sua inopinada decisão.
Assim, segundo Dilma, face á ameaça de Kiev, que lançara o seu exército contra as regiões separatistas, Putin foi forçado a agir rapidamente, e anexou a Crimeia, sem dar um tiro. A guerra propriamente dita tem, de facto, o seu inicio em 2014.
Ainda se tentou pacificar as hostilidades com os acordos de Minsk, mas Kiev nunca os cumpriu, até porque uma das metas era criar regiões administrativas especiais, para as regiões separatistas, significando isso, os falantes de russo recuperarem os seus direitos de cidadania, incluindo o voto. Ora o peso de cerca de 1/3 de falantes de russo podia ser um factor desestabilizador no parlamento nacional ucraniano, razão porque os acordos de Minsk estiveram condenados ao fracasso desde o início.
Dilma conclui, que a sistemática e persistente provocação da NATO à Federação Russa, atingiu o apogeu com o pedido da Ucrânia para aderir à NATO, permitindo-se ainda Volodomir Zelenski, afirmar publicamente estar receptivo à instalação de ogivas nucleares americanas, na Ucrânia, à semelhança do que já fizera os EUA na europa, com as ogivas americanas instaladas na Alemanha, Itália, Bélgica e Turquia, comandadas pelos generais americanos, a que se soma o arsenal nuclear da França e da Inglaterra.
O cerco nuclear foi a gota que transborda o copo para Putin. Vêr os EUA com as suas ogivas nucleares, tão perto da Rússia, não havendo reciprocidade para as ogivas russas que estão a muitos milhares de kilómetros dos EUA, levaram á reacção russa.
Estas considerações de Dilma foram naturalmente ridicularizadas por “opinon makers” brasileiros. Porém passou despercebido o posicionamento do PT de Lula da Silva, em linha com Dilma, nesta matéria.
O próprio Lula da Silva, ainda em campanha, declarara, sobre a guerra da Ucrânia, terem sido dois os mentores da mesma: Zelenski e Putin, e adiantou “se o problema da Rússia era o pedido de adesão da Ucrânia à NATO, bastava a Ucrânia ter desistido disso e não teria havido invasão”.
Terá sido desejada esta guerra? Assim parece, quem não se lembra de Macron, o jovem Presidente Francês, vaticinar “a NATO está em morte cerebral” para colocar os políticos e generais americanos a cogitarem a melhor forma de demostrar a utilidade da NATO. Ora isso só com uma guerra, e a da Ucrânia veio mesmo a calhar. Com uma paulada matou-se dois coelhos: por um lado a necessidade da NATO ficou evidenciada á saciedade, e por outro a indústria militar americana nunca vendeu tanto como agora.
Mas então e o Brasil no meio disto tudo? Na China Lula da Silva disse o que disse, e na Arábia Saudita andou lá perto também. A China para além de pertencer aos BRIC, como o Brasil, é só o país de onde o Brasil mais importa, ou seja, a China é o principal fornecedor do Brasil, os negócios cifram-se em biliões. A Rússia, outro BRIC, é o principal, senão mesmo único, fornecedor do Brasil em fertilizantes, adubos e afins, vitais para a pecuária e agricultura brasileira.
Pensemos nisto: os cinco principais fornecedores da economia brasileira são a China, EUA, Rússia, Alemanha, India, por esta ordem de cifrões, e deste grupo de cinco 3 são BRIC … as afinidades são óbvias.
Entre o interesse da Ucrânia e o interesse do Brasil, a opção de Lula é obviamente o Brasil. A geopolítica faz-se de interesse de países, o resto é a componente musical destas coisas.
Perante este quadro percebe-se porque Lula da Silva faz certas declarações, porque pode.
É constrangedor ver em Portugal, levantarem-se vozes contra as declarações de Lula, ou melhor, perante o posicionamento do Brasil em matéria de política internacional, quase como se o Brasil fosse obrigado a alinhar pelas nossas posições. O tempo das cortes já lá vai.
Até parece, ao ouvir certos políticos e parlamentares portugueses, que só falta cortar relações diplomáticas com o Brasil.
Das raras vezes que Marcelo acertou no seu afã comentarista foi quando afirmou, que se Portugal só falasse com países alinhados com os nossos valores, teria de cortar relações diplomáticas com 2/3 dos Estados do planeta.
E que pensar nas iniciativas de mediação para a Paz? É simples tudo se resume a quem pode o quê.
A China avançou com um plano de paz, imediatamente escarnecido por quase toda a gente, especialmente rejeitado pelos americanos.
O Brasil avançou com uma ideia de agregar um grupo de países, sem interferência directa ou indirecta com a guerra, para gizar uma plataforma de entendimento visando a paz, e isso motivou a desconfiança dos americanos, que vêem em Lula uma caixa de ressonância dos russos, e muito contribuiu o ministro dos negócios estrangeiros da Rússia, Labrov, agradecer aos “irmãos” brasileiros a compreensão de como tudo começou.
Dois países BRIC a terem iniciativas para a paz não é coisa bem vista por muitos sectores “ocidentais”.
Para a Ucrânia negociar a paz só voltando tudo á estaca zero, ao seja retroagir até ao dia 23 de Fevereiro de 2022. Ora isso só é possível com uma vitória militar por parte da Ucrânia.
Para a Rússia qualquer negociação de paz tem de levar em linha de conta as novas realidades do terreno. Ora isso só é possível mantendo o estado de guerra indefinidamente.
Para o “Ocidente” a realidade acabará por se impor, pois uma coisa é fazer como na segunda guerra mundial, em que os vencedores ditaram as suas regras, aos vencidos, desmilitarizando-os, dividindo o seu território e confiscando as suas reservas de ouro. Mas na guerra da Ucrânia, o exército apoiado pela NATO, está muito longe de obter uma vitória militar.
A Rússia já perdeu demasiado em custos de guerra e em soldados, para simplesmente voltar atrás.
Se as oportunidades levantadas pelos BRIC, para um roteiro para a paz, necessariamente longo, é certo, não forem aproveitadas por quem tem “botas no terreno”, então a alternativa será uma nova ordem mundial, onde os centros geopolíticos e interesses objectivos de cada país, tenderão a unir-se contra imperialismos económico/militares ocidentais.
Nunca, como agora, o ditado “não comeces algo que não possas controlar” teve tanta aplicação como todo este imbróglio da Ucrânia.
Para cada acção existe uma reacção. Uma provocação, normalmente, desencadeia reacções violentas sobretudo se a provocação é percepcionada como uma ameaça existencial, e pouco interessa se a ameaça é real ou não, basta que seja percepcionada como tal.
Se há país que possa ajudar a desfazer percepções existenciais, seja da Ucrânia que vê na Rússia uma ameaça á sua existência, seja da Rússia que vê na ocidentalização da Ucrânia uma ameaça à sua existência, é o BRASIL.
Agora … vai levar tempo. Lá isso vai.
Portugal, também tem o seu papel, seja por pertencer à CPLP, onde o Brasil está, seja por circunstancialmente, o Secretário-Geral da ONU ser António Guterres, cujo papel tem sido decisivo, nesta guerra, como foi o caso das vidas que salvou em Mariupol, no complexo azov, ou o caso da negociação dos cereais ucranianos e russos, ficando debaixo da mira dos serviços de inteligência americanos, conhecidos por espiarem os “amigos”. O prémio “amigos de Peniche” assenta-lhes que nem uma luva. Que lata.
Agora, não pode Portugal pretender impor a sua visão aos outros, até porque não é garantido que a nossa visão esteja sempre correcta.
Oliveira Dias, Politólogo