O debate em torno da utilidade, ou falta dela, das maiorias absolutas, em Portugal, anima sempre as dinâmicas partidárias, em especial em períodos eleitorais, e a experiência portuguesa é já de relevo, considerando o quadro das 3 assembleias legislativas portuguesa, distribuídas por Portugal continental, com a Assembleia da República, e Portugal insular, com as suas regiões autónomas dos Açores e da Madeira.
Como em quase tudo, na politica caseira, as posições sobre a matéria balcanizam-se numa dicotomia, entre a estabilidade politica, aqui numa acepção bastante lata, e o autoritarismo dos decisores políticos, cuja tendência é relegar as oposições para um papel residual, quando não mesmo, de menorização roçando a indiferença.
Instrumentos como a negociação, com as oposições e parceiros sociais, e a procura de consensos, quando possíveis, podem ser vistos “empecilhos” que afectam a dinâmica, e a velocidade, com que se concretizam as políticas governativas. Depende de quem tem a maioria absoluta, se a direita ou a Esquerda.
Antes mesmo de nos determos nessas características, vejamos a nossa experiência quantitativa, em matéria de maiorias absolutas de um só partido.
Sem dúvida o partido mais experiente nesta matéria é o Partido Social Democrata (PSD), que conta no seu “pecúlio” com 2 maiorias absolutas, sob a égide de Cavaco Silva, (1987 e 1991), somando-se-lhe as 11 maiorias absolutas de Alberto João Jardim, na Região Autónoma da Madeira, e as 9 maiorias absolutas de Mota Amaral, na Região Autónoma dos Açores. A experiência nesta matéria, do PSD, escora-se, pois em 22 maiorias absolutas.
Já o Partido Socialista (PS) soma, às suas maiorias absolutas alcançadas por José Sócrates (2005), e António Costa (2022), 1 maioria absoluta alcançada por Carlos César, e 2 de Vasco Cordeio, na Região Autónoma dos Açores.
Mas tanto em Portugal continental, como na Região Autónoma dos Açores, verificou-se uma situação peculiar, com um empate de deputados, com vitória eleitoral do PS, respectivamente sob a liderança de António Guterres, e Carlos César (na sua primeira vitória).
Se considerarmos estes casos de empate, na prática, uma verdadeira maioria absoluta, por conta do voto de qualidade que assiste a quem preside às respectiva assembleias, então o pêndulo cai para quem ganhou em boletins de votos.
Não me recordo de, com Almeida Santos, eleito presidente da Assembleia da República, cujo hemiciclo estava dividido ao meio com 115 deputados para o PS e 115 para toda a oposição, de alguma vez ter usado o seu voto de qualidade.
Ficou na história a dificuldade de António Guterres fazer aprovar um orçamento, e ter sido objecto de ironia trauliteira de Durão Barroso, líder do PSD de então, com a invectiva “não me digam que o sr Primeiro-Ministro não consegue convencer um deputado, pelo menos um deputado da oposição para lhe aprovar o orçamento, visto que não conta connosco”.
O “balde de água fria” chamou-se Daniel Câmpelo, deputado do CDS, de Paulo Portas, e Presidente da Câmara Municipal de Viana do Castelo, o qual a troco de diversas reivindicações, para a sua terra, deu o sue voto para aprovar o orçamento de Guterres.
Uns anos mais tarde tive a oportunidade de integrar uma comitiva ao Brasil, onde estava incluído Daniel Câmpelo, com quem privei nessa deslocação de 10 dias, e não resisti a perguntar-lhe se as “reivindicações” foram atendidas por Guterres, tendo-me respondido que sim a 100%.
Ora, considerando estas duas vitorias com o voto de qualidade associado, como maioria absoluta, então a contagem para o PS é de 6 maiorias absolutas.
Temos pois, em Portugal, uma experiência, entre PSD e PS, de 30 maiorias absolutas, com larga vantagem para o PSD.
Que características exibem as actuações do PSD e do PS face às maiorias absolutas que foram colhendo ao longo destes 49 anos de democracia?
Vejamos, mesmo ponderando que cada caso é um caso, pois as maiorias, obtidas por Alberto João Jardim, na Madeira são muito sui generis, quando comparadas com as de Cavaco Silva, no continente, ou Mota Amaral, nos Açores, não se pode escamotear a circunstância de o serem sob o mesmo “chapéu” partidário.
Simplificando, ideologicamente, as coisas, a dicotomia será a direita, representada pelo PSD, e a esquerda, representada pelo PS, para facilitar a análise.
As maiorias absolutas da direita, ficaram na história da nossa democracia, pelo queixume das “forças de bloqueio”, ou seja, Cavaco Silva, pese embora municiado com duas maiorias absolutas, lidava mal com o escrutínio, do Tribunal de Contas, Tribunal Constitucional, Provedoria de Justiça, partidos da oposição, e Presidência da República, onde Mário Soares, com as suas “presidências abertas” expunha os calcanhares de Aquiles do PSD e da sua maioria. Na Madeira, Alberto João não tinha esse “problema”, o seu controle era absoluto, as secções regionais do Tribunal de Contas eram “amigas”, e o Tribunal Constitucional só podia ser accionado através do Representante da República quase sempre um “homem do aparelho insular”.
Outro aspecto marcante, foi a subalternização do Parlamento, órgão ao qual Cavaco Silva só se deslocava duas vezes por ano, por altura da apresentação do Orçamento, e pouco mais, ignorando os direitos das oposições em todas as comissões parlamentares.
Debates eram rejeitados, e Cavaco Silva só concedia, na sua magnânima generosidade, entrevistas. Não havia lugar a contraditório.
O Conselho Económico e Social (CES), cujo papel agregador das forças sociais, juntava á mesma mesa, patrões e sindicatos, e outras forças representativas da sociedade, era visto como uma inutilidade, como Manuela Ferreira Leite chegou a assinalar.
Na Madeira Alberto João Jardim, tinha um domínio quase absoluto da Região Autónoma, incluindo as autarquias, não permitia a inclusão da oposição em nada, e dava ordens para nunca ser aceite uma sugestão, uma proposta que fosse vinda da oposição.
Todos os anos o governo regional fazia a ronda por todos os municípios distribuindo dinheiro para obras, somando-se estes recursos do governo regional, aos recursos financeiros oriundos directamente do orçamento de estado para os municípios, ficando de fora todos os municípios que não tivessem presidência do PSD, estes só tinham os recursos financeiros nacionais. Ainda hoje é assim.
O Poder era exercido numa base ditatorial. A expressão de Luís XV de França “L’etat c’est moi” tinha na Madeira uma dimensão absoluta. A postura de sistemática e constante reivindicação junto do governo da República, trouxe muitos benefícios para a ilha. Alberto João só não conseguiu de Cavaco Silva, o financiamento integral da ampliação do aeroporto, nem o perdão de divida à república. Nestes dois particulares a maioria absoluta do PSD do continente, não se entendeu com a maioria absoluta regional, era a época em que Alberto João se referia a Cavaco como “sôr silva”.
Esse desacerto, curiosamente, haveria de ser ultrapassado quando António Guterres financiou a 100% as obras do aeroporto, e perdoou a divida regional à República.
As maiorias do PS tiveram características substancialmente distintas das do PSD, desde logo à subalternização do Parlamento, imposta nas maiorias de Cavaco, António Guterres contrapôs instituindo os debates mensais, naquilo que foi uma inovação extraordinária, e que muito abriu e fomentou o escrutínio politico.
Também é com Guterres, que pela primeira vez a lei das finanças locais é cumprida, na integra, indo até ao ponto das verbas destinadas às freguesias saírem directamente do orçamento de estado para cada freguesia, respeitando a autonomia das autarquias locais, de todas (freguesias) e não apenas de algumas (municípios).
É também com Guterres que o CES ganha novo folgo, quase que como um renascimento, e a Associação Nacional de Freguesias beneficiando deste novo impulso, foi integrada neste órgão. E o CES foi de tal forma importante que o ministro Vieira da Silva foi o campeão de acordos sociais obtidos, dos quais a CTP sempre se demarcou até hoje, nunca tendo assinado um.
Com José Sócrates, a inovadora instituição de debates na Assembleia da República, passou de mensal para quinzenal. As comissões parlamentares passaram a ter presidências da oposição.
O escrutínio político era total, a par do escrutínio legal, este nunca encarado como força de bloqueio.
A relação entre as maiorias de esquerda nacional com as regionais, em particular com as da Madeira, do PSD não eram fáceis, mas isso não impediu que o truculento Alberto João Jardim, em 2010, visse José Sócrates dar-lhe a mão, aquando o desastre natural do Funchal ocorreu, com dezenas de mortos e milhões de prejuízos materiais, cobrindo todos os prejuízos sofridos, sem hesitar.
A actual maioria do PS, com António Costa, mantém uma linha de abertura ao escrutínio, procura consensos, como se constata com o eterno caso do aeroporto, mas sofre de uma insana rapidez de acontecimentos, que exige aos governantes o debitar de comentários e declarações, perante uma ávida comunicação social, cuja sofreguidão em obter os melhores “shares”, explora as mais insignificantes matérias, só para ter como alimentar a máquina dos jornais dos jornais.
Um bom exemplo, fresquinho, é a obsessiva exploração de um parecer que não existe, no caso TAP, uma minudência, quando comparado com a extraordinária noticia de que a divida nacional se cifra nos 107%, do PIB, ou seja, a divida do País consume tudo o que produz e ainda vai mais 7% além disso, quando já esteve nos 132%, e estima-se que em 2027 se quedará nos 97%. Absolutamente Excepcional. Mas não merece aberturas de jornais. É como a singular factualidade de que nunca mais se ouviu falar em orçamentos rectificativos, desde que António Costa e Centeno meteram as mãos na maça, e que esta maioria mantém ferverosamente.
Os titulares das maiorias de esquerda, PS, nunca recusaram um debate, um confronto televisivo, em contraste radical com a postura dos titulares das maiorias de direita, Cavaco Silva não os queria, e Alberto João Jardim escarnecia-os. Mota Amaral, fazendo jus à sua condição de Opus Dei, fugia a esta linha. E mantinha-se educadamente discreto.
António Guterres, José Sócrates e António Costa, no continente, e Carlos César e Vasco Cordeiro nos Açores, fizeram e ainda fazem, das suas maiorias absolutas, caso de sucesso, em termos de práxis politica, que a direita nunca logrou acompanhar.
Ainda assim, para que um líder seja considerado magnânimo, seria necessário que o partido titular de uma maioria absoluta chamasse a integrar a sua solução governativa, alguns dos seus opositores da sua área ideológica.
Gostava de ver.
Oliveira Dias, Politólogo