Uma queixa apresentada por representantes da sociedade civil levou a entidade reguladora da publicidade suíça a ordenar à FIFA, que rege o futebol à escala mundial, que deixasse de descrever o Campeonato do Mundo de 2022 como “neutro em carbono” por ser uma afirmação “falsa e enganadora”. Esta é uma vitória contra o greenwashing com implicações a nível mundial para os megaeventos, empresas e legisladores.
A Swiss Fairness Commission (SLK), entidade reguladora da publicidade na Suíça, ordenou à FIFA, sediada em Zurique, que “se abstenha no futuro de alegar que o Campeonato do Mundo de Futebol de 2022 no Qatar seria alegadamente neutro em termos de clima e de C02”, porque isso “criou a impressão falsa e enganosa de que já teria alcançado a neutralidade climática ou a neutralidade de carbono antes e durante o torneio”.
Esta decisão histórica surgiu em resposta a uma queixa apresentada em novembro pela Associação de Defesa do Clima (Avocats.e.s pour le Climat) em nome da Alliance Climatique (Suíça) e de quatro organizações da sociedade civil europeia, que tinham apresentado queixas na sua própria jurisdição e que foram reencaminhadas para a Suíça: a Carbon Market Watch (CMV, Bélgica), que a ZERO integra, a Notre Affaire à Tous (França), New Weather Institute (Reino Unido), bem como a Fossil Free Football e a Reclame Fossielvrij (Países Baixos).
“A decisão da Comissão Suíça para a Equidade na Comunicação Comercial confirma as conclusões da investigação e reforça o que muitas organizações não-governamentais têm vindo a dizer no último ano: as mensagens da FIFA são enganadoras para as centenas de milhões de adeptos em todo o mundo que foram levados a acreditar que o seu torneio favorito não tem qualquer impacto no clima“, afirma Gilles Dufrasne, responsável da CMW pelos mercados globais de carbono. “É mais do que tempo de acabar com este greenwashing absurdo“.
“É uma decisão impressionante. Envia uma mensagem forte a todas as empresas que pretendem praticar greenwashing“, afirma Francisco Ferreira, Presidente da ZERO.
O golo da FIFA contra o clima
As queixas basearam-se nas conclusões da investigação da Carbon Market Watch, de que a ZERO faz parte, sobre as alegações climáticas do torneio.
Uma das principais razões pelas quais a alegação de neutralidade carbónica do Campeonato do Mundo do Qatar foi exagerada deve-se à subestimação das emissões atribuíveis associadas à construção dos novos estádios permanentes, que foram subestimadas por um fator de oito. Tal foi possível através de uma manobra de contabilização criativa das emissões, em que apenas foram consideradas as emissões associadas a algumas semanas, quando o alegado tempo de vida dos estádios do campeonato é de 60 anos, ainda que seja muito improvável que estes estádios, construídos especificamente para este torneio, infelizmente conheçam uma utilização otimizada no futuro. Além disso, outras fontes de emissões foram provavelmente igualmente subestimadas, como as relacionadas com os voos de vaivém para os jogos do Campeonato do Mundo.
Crédito máximo
É impossível, por uma série de razões, que um evento desportivo anule, de forma credível, o seu impacto climático através de compensações de carbono. Um dos principais problemas prende-se com a qualidade e a falta de benefícios climáticos dos créditos de carbono utilizados para, supostamente, neutralizar o impacto climático do Campeonato do Mundo.
Os créditos de carbono utilizados provêm, predominantemente, de projetos de energias renováveis que já não são aceites pelos principais organismos de normalização no mercado do carbono porque se tornaram economicamente viáveis por direito próprio e, por isso, o seu financiamento através de créditos de carbono não oferece qualquer benefício adicional para o clima. Talvez por isso tenha sido criada uma nova norma especificamente para o torneio, no âmbito do Global Carbon Council, o que levanta questões sobre a credibilidade e a independência deste sistema de certificação.
Além disso, apesar de a FIFA se ter comprometido a comprar e a utilizar créditos suficientes para cobrir a totalidade das emissões do Campeonato do Mundo, tal ainda não aconteceu, meio ano depois de o torneio ter terminado. Agora que o mundo já não está a assistir, a FIFA deixou cair no esquecimento a sua promessa de compensar toda a pegada de carbono do Campeonato do Mundo, minando a sua própria afirmação questionável.
A FIFA retirou (ou seja, utilizou) créditos que representam pouco menos de 1,1 milhões de toneladas de emissões de dióxido de carbono. Isto equivale a menos de um terço das (sub)estimativas da própria FIFA sobre a pegada de carbono do Campeonato do Mundo que, segundo a entidade, seria de cerca de 3,6 milhões de toneladas de dióxido de carbono.
Além disso, a FIFA anunciou tardiamente que iria compensar metade do impacto climático do Campeonato do Mundo através de reduções de emissões conseguidas por uma central de energia solar. No entanto, este projeto não está registado em nenhuma norma do mercado de carbono existente e, por conseguinte, não gerou quaisquer créditos de carbono. Embora tais projetos sejam úteis e bem-vindos, não proporcionam benefícios climáticos que não pudessem ser alcançados de outra forma no Qatar, pelo que não devem ser considerados como uma compensação de carbono válida.
É tempo de atuar contra o greenwashing
Esta recente decisão reforça a importância dos megaeventos desportivos, bem como as empresas, deixarem de fazer afirmações absurdas sobre neutralidade carbónica, para proteger a sua reputação ou evitar ações judiciais, à medida que o público se torna cada vez mais consciente e cético em relação a estas práticas duvidosas de greenwashing.
Também envia um sinal aos governos e às entidades reguladoras para que se mobilizem e imponham uma proibição total no uso de termos que impliquem a neutralidade carbónica ou climática de produtos (bens e serviços) ou empresas. A União Europeia (UE), por exemplo, tem uma oportunidade de ouro para o fazer nas suas propostas “Capacitar os Consumidores para a Transição Verde” e “Alegações Verdes”. Para a ZERO, todas as alegações devem ser claras, relevantes e confiáveis.
As instituições da UE têm de ir mais longe e decretar uma proibição clara e total das alegações de neutralidade carbónica, caso contrário não só não protege os consumidores, como também não conseguirá levar as empresas a adotarem práticas verdadeiramente sustentáveis.
Fonte: Zero.ong