Os apaixonados pelo arquipélago das Canárias – particularmente de El Hierro, um dos últimos paraísos que é território de um país europeu – foram surpreendidos com a notícia do encerramento de um dos quatro hotéis mais pequenos do mundo, o Puntagrande. Porventura não tanto pelo facto de ser uma unidade hoteleira que tão pouco está ao alcance de todos, mas pela conservação que se fazia do imóvel, indubitavelmente um dos ícones da ilha e que, em certa medida a colocou no mapa do turismo diferenciado, não propriamente para elites, mas para consumidores da natureza cruzada com qualidade global. El Hierro é – acredito que consiga manter essa característica – símbolo de um paraíso mais ou menos sustentável onde faz bem à saúde fazer férias e opção de escolha para os maiores viverem. Ali, quase tudo se identifica com o sentido comum de perfeição, principalmente por estarmos num território de um país europeu cujas sociedades são imensamente contraditórias, onde a prevalece a máxima: “Faça o que eu (digo) mando, não faça o que eu faço”.

Na ilha encontramos varandas, os tais miradouros, no estado mais puro e natural, uma espécie de janelas viradas a paisagens irrepetíveis. Como postais ilustrados daqueles que julgamos estarem maquilhados com imagens tratadas. Encontrámos alguns nas zonas de Jinama, Frontera ou Valverde e sentimos os ventos alísios do mais alto. Experiência inesquecível que se recomenda.
Para nós, a notícia vinculada pelo Diario de Avisos na edição de 6 de julho passado, colhe surpresa porque “morre” – por abandono, entenda-se – um dos símbolos de Las Puntas no município de La Frontera, um pequeno povoado distinto pelo casario e por enquadrar umas piscinas públicas, de grande singularidade, completamente gratuitas, desenhadas por César Manrique, o vulto maior, pintor, escultor e activista do desenvolvimento sustentável da ilha de Lanzarote que estendeu a sua influencia a todo o arquipélago das Canárias (viveu entre 4 de abril de 1919, e 25 de setembro de 1992).

Aqui cabe um parêntesis para assinalar a sensação que tivemos durante a nossa estadia: manutenção relativamente descuidada e uma piscina interior abandonada por erro técnico estrutural que se poderia corrigir de algum modo. Mas não: ninguém sabe nada de nada ou fazem de conta.
Hotel Puntagrande fecha por causa da turisficação
A decisão de encerrar é do proprietário Davide Nahmias e prende-se com a turistificação, porventura pelas fotografias da zona que se tornaram virais. Mas afinal qual é o conceito de turistificação ou a gentrificação turística que daí resulta? Essencialmente, exprime a expansão significativa e hegemónica do turismo num determinado território, tanto do ponto de vista da oferta de serviços e equipamentos, incluindo alojamento de vários géneros, quer na procura do local como destino para viagens de recreio, pressionando a capacidade turística desse território e o próprio território tantas vezes por falta de infraestruturas que suportem essa mesma pressão.

Sinceramente, dez dias depois ficámos sem perceber que visão tem a administração pública sobre o futuro. Neste capítulo é justo ressalvar o conceito e a arquitectura singular que preside à generação eléctrica da ilha e que explicarei depois.
Puntagrande está entre os quatro hotéis mais pequenos do planeta e numa localização única sobre uma pequeníssima península ou língua de pedra lavática sobre o oceano. Aí sentados fica-se com a sensação de estarmos num dos pontos do fim do Mundo. Atrás, temos de olhar o céu: vemos a cordilheira que vai desde o Mirador de La Peña, em Guarazoca, norte da ilha, Montanha del Fraile, Tenerista e o Pico de Malpaso, o ponto mais alto com 1.501 metros sobre o Atlântico.
A comunhão entre o mar e a vertente montanhosa é exuberante quanto baste para agradecermos à “mãe natureza”. Las Puntas e todo o vale de La Frontera é um presente que inspira qualquer um e exige senso comum na sua protecção equidistante do conceito de turisficação e muito mais do turismo do álcool por chamamento a festas multitudinárias – de arromba – que se começam a instituir em alguns dos locais mais emblemáticos do arquipélago, tal como sucede em Ibiza, nas Baleares.

Não é admissível – debaixo de qualquer circunstância – autorizar turismo do álcool em El Hierro: não acrescenta valor à economia herreña e destrói o conceito de turismo a curto e médio prazo. As redes sociais são pródigas em construir e destruir imagens.
Paraíso para ricos do Leste europeu
A turisficação é um problema gigantesco das Canárias, associado à chegada massiva de candidatos a residentes, nos últimos dois anos e meio, sem qualquer controlo e muito menos sem que se saiba quem é quem. A percepção é de que o território se tornou o paraíso para famílias relativamente jovens, com filhos pequenos, de classe média alta, ricos e muito ricos (meio oligarcas), sobretudo de países periféricos à Rússia e Ucrânia. Chegam às dezenas semanalmente nos ferries que fazem ligação ente Huelva ou Cádiz às ilhas. Há uma passa palavra quase selvática de observar a sociedade canária: de que as ilhas são uma espécie de éden – seguro, é certo -, onde se pode fazer o que nos apetece – evidentemente sem colocar em causa a segurança de pessoas e bens já que apenas existem duas formas de sair, por mar ou ar, e as forças de segurança do Estado estão aí -, poder depositar dinheiro injustificado para gentes destas nacionalidades, pagar sempre em dinheiro vivo, dispor de saúde pública gratuita e de excelência, não ser obrigado a falar o idioma, atamancar regras tributárias e fazer negócios à distância, por enquanto sem grandes riscos de controlo do ciberespaço. Canárias vive outras preocupações: controlo das rotas migratórias de Marrocos, Saharaui e Senegal; das rotas do narcotráfico; das suas águas territoriais sob o ponto de vista do tráfego marítimo comercial e do espaço aéreo, porventura o mais movimentado do Ocidente africano.

Estatuto Excepcional têm os ucranianos que chegam sob a condição de candidatos a refugiados e significativamente com sinais exteriores de riqueza impressionantes, o que não obsta que recebam medicamentos e alojamento gratuito, incluindo a possibilidade de obterem subsídio individual de cerca de 410 euros. São os sem-par que podem abrir contas bancárias e depositar qualquer valor, mesmo centenas de milhares de euros, sem ser escrutinados, ou melhor bastando-lhes assinar um formulário onde garantem a procedência licita do dinheiro. Posteriormente, a entidade bancária envia o documento à Autoridade Tributária para que esta confronte as informações com a congénere ucraniana. Pergunta-se: como e em que circunstâncias o fazem?
51% dos turistas fora dos hotéis
Mas voltemos atrás, a El Hierro – um dos territórios do planeta abençoados pelo Deus Natureza – que no primeiro semestre de 2022 recebeu 8.491 turistas que pernoitaram 29.042 noites. Sendo certo que 2022, terá terminado com a entrada de mais de 17.000 turistas que terão pernoitado 58.000 noites. Isto não significa que a ocupação hoteleira corresponda a este registo: os indicadores estatísticos mostram que 51,07% descansaram fora do contexto hoteleiro, ou seja, nas designadas “vivendas vacacionais”, os tais alojamentos turísticos, nem todos legalizados e reconhecidos, e em autocaravanas. Não compreendemos quem defende e como se pode garantir o amparo dos 58% da superfície de espaços naturais em regime de território protegido, a maior percentagem entre todas as ilhas.
As autocaravanas não devem proliferar em territórios sem infraestruturas dedicadas. Em quase todo o arquipélago, passaram de última opção a uma espécie de nova praga, pese embora não seja um formato de turismo barato: valores de aluguer altos (cauções de 1.000 euros) e passagens em ferrie relativamente onerosas pelas tarifas aplicadas a “não residentes”. Mas é a opção de “comprar” um pacote 2 em 1: uma suite sobre rodas que, nas ilhas, não tem custos associados já que se pode estacionar indefinidamente em qualquer espaço – as policias municipais fazem de conta que não veem -, inclusivamente à porta dos hotéis, atropelando a legislação. Despejam-se os dejetos dos inodoros nas sarjetas das águas pluviais e até se pode tomar duche ao ar livre usando os sistemas autoportantes (até têm cortina).

Depois de percorrer mais de 1.100 quilómetros na ilha – a de menor superfície entre as sete ilhas maiores, com 268,71 km² – deparámo-nos com um sentimento de desapego de quem manda: desde logo pelos preços elevados dos combustíveis e dos alimentos nas duas maiores distribuidoras da ilha que são empresas locais.
Os herreños tem vida difícil perfeitamente injustificada porque os custos de transporte são subsidiados. Afinal, El Hierro é como uma região insular dentro de outra insularidade?
Claramente ficámos impressionados com alguma desqualificação da ilha mais Ocidental e meridional das Canárias. Estatísticas de 2022 registam um total de 11.423 habitantes – continua a ser a segunda ilha menos povoada à frente da La Graciosa (730 habitantes), pese embora se assinale ligeiro crescimento com o regresso a casa de herreños migrados há décadas na Venezuela.
A decisão de fechar no final do ano – segundo o proprietário Davide Nahmias – prende-se com “a falta de sensibilidade das autoridades locais que estão reféns dos seus próprios medos e da pressão daqueles que acreditam que tudo lhes pertence (…)”.

O italiano Nahmias, é categórico ao afirmar que o entorno do hotel, a vila de Las Puntas, deixou de ser atractivo, adiantando que “não se pode enganar os clientes vendendo-lhes um quadro incomparável e que se encontrem com acessos em um estado lamentável, convertido em um estacionamento e cujo descanso deve conviver com garrafas e música a todo volume até altas horas da noite“. Já em 2021, em período ainda de restrições pós-pandemia do SARS-Cov-2, Davide Nahmias denunciou um ataque intimidatório, com característica racista, por pinturas jingoístas numa das suas propriedades.
Quem vive nas Canárias pede bom senso e o reconhecimento que El Hierro, muito à semelhança de La Gomera, é um paraíso pouco explorado – a bem de todos – onde a humanidade ainda estragou pouco, pese embora a ânsia de ter dezenas de milhares de turistas, na convicção ideológica de que a massificação é a única saída para acrescentar valor à economia. Redondo engano! –
– por José Maria Pignatelli (Texto não está escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico)