De Ramalho Eanes, o primeiro Presidente democraticamente eleito, cujo magistério se caracterizou por governos de iniciativa Presidencial, e algumas “brigas” com o Partido Socialista, e Mário Soares, chegando a mentor do PRD, partido com uma existência fugaz, experiência nunca mais repetida, depois dele, a Mário Soares, o Presidente do povo, que com as suas “Presidências abertas”, levando a presidência ao terreno, junto do povo, das dificuldades, do “país profundo”, como se dizia então, fêz a “cama” a Cavaco Silva, para desespero deste, e do seu agonizante PSD, detentor, até hoje, do percentual máximo que um candidato presidencial obteve, para desespero de Marcelo, que apesar das “selfies” profusamente, e obsessivamente, espalhadas pelo país, não logrou suplantar Mário Soares, passando por Jorge Sampaio, que manteve as “Presidências abertas”, tendo visitado todos os municípios do País, indo desaguar em Cavaco Silva, com os seus “roteiros temáticos”, mais selectos, menos próximos do povo, todos ex-Presidentes da República, tinham um denominador comum, como que quase uma regra não escrita – a discrição da sua magistratura de influência, num compromisso de respeito institucional, que levava para o recato das reuniões “tête à tête” das quintas feiras.
Marcelo Rebelo de Sousa, estilhaçou tudo isso. O seu ego não cabe nas regras de discrição institucional, entre órgãos de soberania, que o bom sendo reclama, nem tão pouco na independência e respeito de cada órgão de soberania, em particular o governo.
Nunca foi tão premonitória a afirmação do ex-secretário de estado, Hugo Santos, sobre Marcelo quando vaticinou “(Marcelo)… pode ser o nosso maior pesadelo”, a propósito do caso TAP.
Marcelo Rebelo de Sousa, douto professor de Direito Constitucional, confundiu, desde o primeiro dia, a função Presidencial, com a função executiva do governo, imiscuindo-se, a seu bel prazer, nos assuntos do governo, e bem assim, no da Assembleia da República. Isso foi particularmente notório no período da Covid, com Marcelo a ser sempre o portavóz, antes de qualquer outro, remetendo, sistematicamente o primeiro ministro para um plano secundário. Habituou-se, pois, a chefiar o governo, com a complacência de António Costa, sem qualquer respaldo constitucional.
As coisas azedaram, definitivamente, quando António Costa, numa clara prova de vida, decidiu mostrar ao senhor professor de direito constitucional, quem de facto e de direito mandava no governo, ou seja, quem é o chefe de governo – foi quando decidiu, contrariando as “ordens” de Marcelo, manter João Galamba, como ministro das infra-estruturas, causando um ataque de nervos, a roçar a epilepsia, da generalidade de comentadores, comentaristas, opiniáticos e jornalistas.
O “banho” de realidade constitucional, foi um forte abalo para o ego presidencial, que levou Marcelo a recorrer a todas as armas do seu “arsenal” politico, isto já não lá vai com “vichissoyse”, terá pensado.
Diz-se á boca pequena que Marcelo Rebelo de Sousa pisa o risco do legalmente aceitável na sua conduta presidencial, tão inusitadas são as suas acções, frequentemente invadindo competências de outros órgãos de soberania.
Isso vê-se em alguns exemplos, que aqui revisitamos “en passant”:
As duas últimas reuniões do Conselho de Estado, foram instrumentalizadas por Marcelo, para obrigar o primeiro-ministro a justificar-se sobre certos assuntos, algo que já tinha feito na Assembleia da República, órgão a que o governo responde.
O Conselho de Estado, goste-se ou não, é um órgão de consulta do Presidente da República, sendo as suas reuniões secretas, por força Artº 144º, nº 2, da CRP, e do seu regimento Artº 15º, nº 2, matéria na qual a lei (Lei nº 31/84, de 6 de Setembro) que estabelece o estatuto dos conselheiros, não aborda.
As competências deste órgão consultivo, são fixadas pelo Artº 145º da CRP, e são apenas as seguintes:
– pronunciar-se sobre a dissolução da assembleia da república;
– pronunciar-se sobre a demissão do governo;
– pronunciar-se sobre a declaração da guerra e da paz;
– pronunciar-se sobre os demais casos previstos na constituição e, em geral, aconselhar o Presidente da República no exercício das suas funções, quando este lho solicitar (sublinhados, nosso).
É de uma evidência cristalina que o Conselho de Estado não pode ser convocado para pedir justificações ao Primeiro-Ministro, porque essa prerrogativa está reservada á Assembleia da República, nem tão pouco para lhe dar sermões de qualquer espécie, assim, se num conselho de estado, o Presidente não pedir conselho nenhum, o Primeiro-Ministro, e os demais conselheiros, têm mesmo de ficar em silêncio.
Esta instrumentalização de um órgão consultivo, como se se tratasse de uma segunda câmara legislativa, numa analogia livre, é totalmente descabida e não tem enquadramento constitucional.
Em matéria de pioneirismo, sem conforto constitucional, Marcelo é campeão, e único, porque os seus antecessores nunca o fizeram, uma vez que para além da utilização do Conselho de Estado para fins, sem previsão constitucional, Marcelo introduziu outra novidade, também ela sem previsão constitucional, nem legal – são os convidados que leva ao conselho de estado.
Sendo as reuniões deste órgão SECRETAS (não públicas na grafia da lei), e não havendo nenhuma base legal que admita convidados ás suas sessões, os convites de Marcelo, a Ursulla Von Der Leyen, Roberta Metsola, Elisa Ferreira, John Kerry, António Guterres, Mário Draghi, e Jean Claude Junker, para participarem nas reuniões do Conselho de Estado, como aconteceu, são-no no mais completo arrepio, constitucional e legal.
Mas … temos mais.
Marcelo, tem sido pródigo nas mensagens politicas depreciativas de diplomas que promulga, sem que isso esteja devidamente escudado em alguma regra. Quando a constituição confere ao Presidente da República o poder de promulgar leis, significa isso mesmo – promulgar, sem mais. Quando uma promulgação é acompanhada de uma mensagem verberando o diploma promulgado, é claramente um excesso de intervenção, vedado ao Presidente, nesta instância. Isto só serve para achincalhar o governo e menorizar o diploma, lançando desconfianças gratuitas, nos destinatários do diploma, causando ruído social gratuito.
O Presidente pode formalmente dirigir mensagens, aos órgãos legislativos, em duas situações específicas:
– quando veta um diploma e o devolve a quem o fez, com uma fundamentação, nisso se contendo a “mensagem”;
– e a prerrogativa presidencial para enviar mensagens, mas apenas direccionada à Assembleia da República, nunca ao governo, que está prevista no Artº 133º, alínea d), tratando-se de um acto isolado, não pode ser agregada a outro acto, o da promulgação, por vontade presidencial, porque ele também está vinculado pela constituição.
Os antecessores de Marcelo, utilizaram esta prerrogativa para dirigir ao parlamento mensagens sobre temas ou assuntos, sobre os quais a Assembleia da República, por omissão, o não tenha feito de “motu próprio”, e esse é o espirito daquela prerrogativa constitucional. Marcelo reduziu a pó este espirito.
No caso de um recente veto presidencial estar condenado a ser reconfirmado pela Assembleia da República, obrigando Marcelo a ter de o promulgar, contrafeito, não se coibiu de deixar a “ameaça” que o diploma em causa estaria sujeito a regulamentação, e nessa oportunidade ele teria de intervir … já se sabe em que sentido. Estas ameaças vêm na linha de admoestações que Marcelo se permite fazer em público a Ministros, como foi o caso da Ministra da coesão, e antes dela a ameaça a António Costa, caso este tivesse alguma veleidade em matéria de cargos internacionais. Inacreditável o á-vontade com que o Presidente se permite “ameaçar” outros órgãos de soberania. E tudo com um sorizo nacara, como quem está a gostar do que faz. L’état c’est moi.
Outro exemplo, prende-se com as constantes deslocações ao estrangeiro de Marcelo, tendo sido especialmente arrepiante a sua deslocação a Kiev, inaugurando uma espécie de ”turismo de guerra”, a todos os títulos censurável.
Arrepiante porquê? Porque foi lá dizer, alto e bom som, em português e em ucraniano, que os problemas da Ucrânia são os problemas de Portugal, ou algo do género. Que quis dizer, com isto o Presidente da República? Estamos em guerra coma Rússia?
Chegou mesmo a afirmar, quando instado pelos jornalistas, sobre haver ou não uma sintonia entre o Presidente e o Governo no apoio á Ucrânia, que quando o Presidente afirma todo o apoio à Ucrânia, não há ninguém acima dele que possa dizer o contrário, e só ele vincula Portugal, estando naturalmente a referir-se ao governo português.
As competências do Presidente em matéria de relações internacionais, de acordo com o Artº 135º da CRP, são:
– nomear embaixadores;
– ratificar tratados internacionais e …
– declarar a guerra.
Vejamos, o Presidente da República não foi à Ucrânia nomear embaixadores, nem ratificar tratados internacionais … .
Aqui chegados podemos concluir que o “estado da arte” do exercício da função presidencial de Marcelo, soma inconstitucionalidades a todos os títulos inadmissíveis.
Algo, ou alguém tem de fazer alguma coisa, em matéria de “impechement”, senão a ordem constitucional está perdida, porque, dois anos e meio nisto é demais.
Oliveira Dias