A reforma do mercado da eletricidade, apresentada pela Comissão Europeia em março passado, visa evitar uma repetição da crise energética do ano anterior, que viu os consumidores confrontados com valores crescentes das suas faturas de energia em consequência dos valores do preço do gás a assumirem níveis recorde. Embora os Estados-Membros da UE tenham concordado com a necessidade de aprovar a reforma durante 2023, divergiram quanto à possibilidade de permitir apoios estatais à extensão da vida útil das centrais nucleares existentes.
No âmbito da reforma proposta pela Comissão, é preconizada a existência de “contratos por diferença” bidirecionais – com um preço máximo e um preço mínimo – os quais se tornarão obrigatórios assim que os governos intervirem no mercado para apoiar os produtores de energia. Com este mecanismo, as autoridades públicas compensam a diferença quando os preços da eletricidade descem abaixo do preço mínimo acordado, enquanto os produtores redistribuem às autoridades públicas a potencial receita excedentária quando os preços ultrapassam o limite máximo.
O novo sistema pretende substituir a miríade de regimes de apoio estatal que estão atualmente em vigor no bloco de 27 países, trazendo mais transparência a este processo ao simplificar o mecanismo de atribuição de subsídios energéticos na UE. No entanto, os países da UE têm estado muito divididos relativamente a esta temática.
Enquanto a França pretende utilizar o mecanismo para apoiar investimentos na extensão da vida útil dos 56 reatores nucleares que possui, outros países como a Alemanha, a Bélgica, a Espanha, a Áustria e o Luxemburgo opõem-se.
A argumentação da França é suportada no facto de a energia nuclear ser responsável por 25% da produção de eletricidade da Europa, considerando que, se a vida útil dos reatores não puder ser prolongada, a Europa será confrontada com consequências não negligenciáveis em termos de segurança energética e de objetivos climáticos. Por outro lado, outros países da EU consideram que satisfazer a pretensão da França criaria distorções significativas no mercado interno de energia da EU, nomeadamente, porque os investimentos iniciais nos ativos nucleares existentes já se encontram amortizados na sua grande maioria.
Na verdade, embora a proposta inicial da Comissão sobre “contratos por diferença” visasse apenas o apoio estatal a novas construções – principalmente energias renováveis – a proposta apresentada em março também se aplica a ativos existentes, incluindo reatores nucleares. Este último facto tem sido o impulsionador da discórdia pelo facto de alguns Estados-Membros considerarem que a aplicação de “contratos por diferença” para instalações existentes beneficiaria principalmente os países com grande capacidade de produção de energia, em particular a França. É considerado que a medida em apreço viola as regras em matéria de auxílios estatais, distorceria a concorrência da UE e favoreceria o gigante da produção de eletricidade EDF (Électricité de France), que opera os reatores nucleares do país.
Um ponto de discórdia fundamental no debate diz respeito ao princípio da “proporcionalidade”, que determina a percentagem de ativos abrangidos por um “contrato por diferença”. Alguns Estados-Membros consideram que apenas uma parte das receitas dos “contratos por diferença” deveria ser alocada ao reinvestimento em ativos existentes. Outros argumentam que apenas parte da produção correspondente a um ativo existente deveria estar associada a “contratos por diferença”. Caso contrário, a utilização de “contratos por diferença”, indexados a toda a produção de uma central nuclear em fim de vida, reduzirá os incentivos para investir em energias renováveis.
No entanto, a França considera que os avultados investimentos, necessários para manter ou prolongar a vida útil dos reatores nucleares existentes, implicarão o fim destes ativos, se não forem subsidiados através das receitas excedentárias dos “contratos por diferença”.
Neste contexto, a discussão desta temática evoluiu mais recentemente para a análise de uma proposta em que as receitas potenciais geradas pelos “contratos por diferença” seriam distribuídas por todos os clientes finais de eletricidade com base na sua quota de consumo, incluindo famílias, PMEs e clientes industriais com significativos consumos de eletricidade. Todavia, a Alemanha e a Espanha têm vindo a considerar que seria preferível redistribuir as receitas principalmente pelos grandes consumidores industriais de eletricidade que sofrem uma desvantagem competitiva devido aos elevados preços da energia na Europa.
Desta forma, o que mudará com a reforma do mercado da eletricidade na Europa?
Perspetiva-se que as novas regras tornem os preços da eletricidade menos dependentes do preço dos combustíveis fósseis, criando um amortecedor entre os mercados e as contas de eletricidade pagas pelos consumidores. Por outro lado, a reforma do mercado de eletricidade deverá proporcionar uma proteção acrescida aos consumidores, perspetivando-se uma maior disponibilidade de contratos com preço e prazo fixos, flexibilidade do consumidor escolher preços dinâmicos com possibilidade de contratos múltiplos ou combinados, bem como obrigatoriedade dos fornecedores de energia prestarem informações transparentes na hora de assinatura do contrato.
Perspetiva-se ainda a criação de modelos de negócio facilitadores do acesso às energias renováveis através da criação de mecanismos de comercialização local de eletricidade gerada a partir de fontes de energias renováveis (por exemplo, a energia proveniente de painéis solares pode ser vendida aos vizinhos).
Será ainda expetável que os consumidores mais vulneráveis estejam mais protegidos, sendo dado aos governos a capacidade de criarem mecanismos de regulação dos preços da venda de energia a retalho para as famílias e para as PMEs, bem como criarem mecanismos de garantia de que nenhum consumidor fique sem eletricidade.
As grandes empresas terão preços mais estáveis graças a contratos de longo prazo (tais como acordos de compra de energia em que o produtor de energia concorde em vendê-la diretamente aos consumidores a um determinado preço).
Os produtores terão receitas mais estáveis. Os investimentos em novas instalações de produção de energia a partir de fontes de energia não fósseis serão feitos sob a forma de contratos bidirecionais por diferença. Por um lado, isto garante um retorno mínimo dos investimentos realizados e, por outro, evita custos excessivos em caso de crise.
João Calado
(Professor Coordenador Principal do ISEL)