No passado dia 22 de Dezembro de 2023, um órgão de comunicação social noticiou que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, por ordem da sua Provedora, espoletou uma auditoria interna, aos serviços da instituição, tendo aquele instrumento como escopo apurar as relações familiares em processos de decisão, recorrendo à técnica de escrutínio, na forma de inquérito individual, com a pergunta “na presente data, tem alguma relação familiar com um ou mais trabalhadores da SCML?” visando parcialmente o universo de colaboradores, da SCML, porque apenas destinado a dirigentes, com a característica de o mesmo ser de adesão facultativa, ou seja, um dirigente podia optar por não responder ao inquérito.
O âmbito da auditoria define ainda o conceito de “relações familiares” como “os que ocorram com o seu cônjuge, algum parente, ou afim, em linha recta até ao 2º grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem vivam em economia comum”, obnubilando o conceito presente no Código Civil, no seu Artº 1576º – “São fontes das relações jurídicas familiares, o casamento, o parentesco, a afinidade e a adopção”.
Os respondentes, estão vinculados a identificar a estrutura orgânica em que se encontram os familiares, e que função, em concreto têm.
O objectivo, definido para esta auditoria foi “Reforçar a lisura e independência dos processos de decisão”.
Feito o enquadramento do caso em apreço, e antes mesmo de o analisar em detalhe, importa dizer que as relações familiares em determinadas empresas publicas ou privadas em Portugal tem já um longo historial, por exemplo, existia, e falo no passado porque desconheço se ainda é assim, uma longa tradição nos CTT, de se recrutar novos elementos no universo de familiares de trabalhadores dos CTT, a tal ponto que todos tinham ou tiveram família como colegas.
O sector da banca era outro onde esta tradição estava consolidada, e em regra filho de bancário, bancário seria.
No sector portuário, especialmente nas classes de estivadores, Conferentes e Tráfego, as 3 classes de portuários como tal reconhecidos, hoje fundidas numa só – a de trabalhador portuário “tout court”, era habitual os filhos dos dirigentes, especialmente os dirigentes sindicais, terem a porta aberta para a profissão. Eu próprio estive quase a ingressar no Tráfego, como manobrador de empilhadores, por via do meu pai ser Encarregado Geral de Tráfego, e tal só não aconteceu, porque na época o governo travou novas admissões nas classes portuárias, tendo em vista uma profunda reestruturação do sector portuário, o que viria a concretizar-se anos mais tarde, razão porque, em alternativa, ingressei naquilo que na época se apodada de “profissão da ferrugem”, como aprendiz de mecânico.
Se no sector privado esta tradição era, é, e será, mais ou menos tolerada, já no sector público, ou semi-público, porque financiado com os nossos impostos, é bem diferente.
Os tempos são outros e a admissão em profissões com base no laço consanguíneo, já não vinga com a mesma normalidade de há uns 30, 40 anos.
No caso da santa Casa da Misericórdia de Lisboa, estamos perante uma pessoa colectiva de direito privado e utilidade pública e administrativa, criada e regulada por diplomas legais, com dois órgãos importantes – a Provedoria, cuja nomeação é da competência do Primeiro-ministro e do ministro da tutela da SCML, e a Mesa, composta pela própria Provedora, e os restantes elementos, nomeados pelo ministro da tutela.
Não há, pois nenhuma dúvida de que a SCML, está mais no perímetro do sector público, do que no do sector privado.
A SCML é daquelas instituições onde muita gente tem alguém que lá foi parar, não exactamente pelo critério de competências mas sim da célebre “cunha” à portuguesa, em detrimento do usual processo concursal obrigatório no sector público.
Apesar de tudo, o que aqui se expõe, e independentemente do modo como os actuais trabalhadores foram recrutados, a pergunta de 1 milhão de dólares é esta – É legítima, ou até licita, a pergunta que se coloca no âmbito da auditoria em causa?
Antes mesmo de convocar á liça o Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD), cerne deste artigo, importa registar que esta pergunta dificilmente se liberta das amarras do assédio profissional, exercido pela entidade empregadora (SCML), sobre trabalhador, tão intrusiva é na vida deste, caindo, pois, nas malhas do Artº 29º, nº1 e 2 do Código do trabalho (do sector privado), ou do Artº 71 do Código de Trabalho em Funções públicas, este até exigindo a aprovação de um Código de Ética sobre esta matéria.
Só por aqui, a senhora Provedora da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa tem em mãos um problema muito sério … .
Mas agora vejamos a questão á luz do RGPD.
Pedir a um trabalhador, ainda que de forma facultativa, para que identifique um familiar, um parente, uma afinidade, é entrar no domínio do tratamento de dados pessoais sensíveis, ou na acepção do Artº 9º do RGPD, de dados especiais, algo proibido pelo nº 1 do Artº 9º do RGPD.
Essa proibição só pode ser sanada, através de um consentimento, nos termos do Artº 6º do RGPD (Fontes de licitude), e este obedece a critérios rigorosos que têm de ser observados cumulativamente, não sendo, de todo, suficiente que o trabalhador apenas dê o seu assentimento, pela mera participação nas respostas ao inquérito da SCML.
Assim, a SCML tem de assegurar que recolheu o obrigatório consentimento formal do trabalhador, para ele participar nas respostas ao inquérito. Mas, o trabalhador visado pelo familiar respondente, também tem de dar igual consentimento, sem o qual esse tratamento de dados, é ilegal.
Os trabalhadores, da SCML, respondentes, e não respondentes, mas visados pelas respostas, que não se revejam na licitude desta auditoria, por ausência de consentimento, podem e devem, apresentar reclamação formal, junto da Provedora, e se dessa reclamação nada resultar, então deverão accionar o Encarregado de Protecção de Dados da SCML – dadospessoais@scml.pt – e se a ausência de evolução na matéria, se mantiver, então deverão recorrer à autoridade nacional, ou seja, a Comissão Nacional de Protecção de Dados.
Em conclusão, a SCML, nem sequer em sede de recrutamento, pode pedir este tipo de informação, pois no mínimo ela colide estrondosamente com o preceito constitucional que repousa no nº 2, do Artº 13º da Constituição da República Portuguesa.
O que a Provedora pode, e está até obrigada a fazer, tendo em vista o objectivo da auditoria – reforçar a lisura e independência dos processos de decisão – é identificar os casos que levantem dúvidas, e escrutinar os dirigentes intervenientes nesses processos, auditando os respectivos processos de admissão, para aferir se houve ultrapassagem de critérios de selecção, ou qualquer outra intervenção espúria no mesmo, e retirar as consequências daí resultantes.
Isto a existirem critérios de selecção … .
Oliveira Dias, Politólogo