Acordo Ortográfico e as Autarquias
Numa acesa discussão, em contexto profissional, um colega chamava-me á atenção para a particularidade das minhas peças documentais, técnicas, e não técnicas, estarem grafadas sem respeitarem o “novo acordo ortográfico”, o que potencialmente podia gerar problemas de aceitação por parte dos destinatários finais das mesmas, atendendo á circunstância desses destinatários serem, em grande parte, instituições do sector público, em especial, municípios e freguesias.
É um facto que a esmagadora maioria das nossas autarquias, adoptou o “novo acordo ortográfico”, celebrado em 1990, através de um tratado internacional, no qual as partes são os países de língua oficial portuguesa, à semelhança da decisão do governo português que impôs o acordo em Portugal.
Sucede que só alguns países de língua oficial portuguesa (Portugal, Brasil e Cabo Verde), cumpriram todas as etapas para a entrada em vigor do tratado, outros, vão a meio caminho, e Angola e Moçambique, nem sequer ratificaram esse tratado, condição sine-qua-non para que produza efeitos jurídicos para as partes.
Ou seja, e sem grandes tecnicidades, o acordo resulta de um tratado que ainda não foi firmado definitivamente.
Em Portugal, houve até, há uns anos, uma celeuma, quando um Juiz se recusou a aceitar uma peça processual por, segundo ele, não estar escrita correctamente em língua portuguesa, visto ter sido apresentada grafada segundo o acordo ortográfico, obrigando o autor da mesma, e se não me falha a memória teria sido alguém da segurança social, a reescrever o texto.
Essa posição do Juiz foi objeto de recurso por parte da Segurança Social, junto do supremo, que sancionou o Juiz, disciplinarmente, por considerar que este foi além da sua função jurisdicional.
Mais tarde, um grupo de cidadãos ao abrigo da iniciativa popular, pediu á Assembleia da República a revogação do acordo, mas não teve ganho de causa por esta matéria não se conter no perímetro das competências legislativas da Assembleia da República, mas sim ao governo a quem cabe assumir as posições que entender em matéria de tratados internacionais.
Aqui chegados, o que fazer, adoptar a grafia antiga ou a nova?
O governo enquanto órgão superior da administração pública, pode, de facto, impor a aplicação de novas regras da língua portuguesa, designadamente as acolhidas no tratado internacional que fixa o acordo ortográfico, mas não na sua função legislativa, porquanto o acordo que é um tratado internacional, carece de ratificação, logo não vincula as partes outorgantes do mesmo.
Foi, de resto, nessa senda que o senhor juiz trilhou, quando explicou a razão porque não aceitava a grafia do novo acordo. O Supremo não o acompanhou, não porque concordasse com o novo acordo, mas porque considerou não estar ao alcance de um juiz essa apreciação.
A verdade é que os Tribunais para além de serem órgãos de soberania, e por isso não estão sujeitos ás orientações de outros órgãos de soberania, como o governo, também não fazem parte da Administração Pública central, da qual o governo é o órgão máximo.
Com as autarquias locais, ressalvadas as devidas e necessárias distâncias, sucede algo parecido, atendendo a que estas são Administração Pública Descentralizada, ou seja, não integram o perímetro da Administração Pública Central, concomitantemente, não recebem ordens do governo, enquanto órgão superior da administração central. Isso seria inconstitucional.
Já lá vai o tempo em que o Poder Central, leia-se o poder Régio, tudo podia, como aconteceu com D. Dinis, quando impôs a grafia dos documentos oficiais na língua que o povo falava, à época o galaico-português, contribuindo, definitivamente, para a autonomização do Português.
Por essa mesmíssima razão, as autarquias locais não estão obrigadas a seguir o novo acordo, enquanto as regras deste forem orientações do órgão superior da administração pública central.
Diferentemente acontecerá quando o tratado internacional instituidor do novo acordo, for finalmente ratificado pelas partes outorgantes. Aí, a sua aplicação em Portugal decorrerá, não de uma função administrativa do governo, mas sim de uma função legislativa do governo.
Por seu lado as autarquias não podem exigir a quem com elas se relaciona, peças grafadas de acordo com uma orientação administrativa do governo.
Os particulares, empresas, organizações, etc, estão obrigados à correcta apresentação de peças escritas na língua portuguesa, e salvo melhor opinião, a nova grafia, ainda não faz parte da mesma.
Podem, porém, sendo essa a sua vontade, adaptar essas peças, á luz do novo acordo, por conta própria, pese embora, na minha muito modesta óptica isso seja muito forçado e duvidosa legalidade.
Assim como dispiciendo é, vários autores, sobretudo jornalistas, inscreverem no final das suas peças grafadas de forma clássica, a menção de que o fazem, por vontade própria.
Devia ser o contrário, pois quem carece de fundamento legal é a nova grafia, e não a clássica.
Outros artigos de Oliveira Dias
Publicado no Semanário NoticiasLx: