A “difícil” vida de um Presidente de Junta!
Neste artigo abordaremos um dos instrumentos mais requeridos pelos cidadãos, nas freguesias, e o foco, hoje, porque haverá outros “focos” ulteriores a explorar nestas linhas, será a competência material, ou seja, em que domínios temáticos, ou para que finalidades, é possível requerer um atestado num qualquer balcão de freguesias.
Em ano de eleições autárquicas, como é 2025, vai sendo altura das respectivas máquinas partidárias e movimentos de cidadãos, começarem as diligências para a escolha dos melhores candidatos, e naturalmente, a tradição manda que, especial, atenção se dê, a quem vai encabeçar os respetivos projectos colectivos, que é como quem diz, quem melhor para assumir a função de Presidente da Junta de Freguesia.
Existe uma imagética “cor de rosa” associada á função de Presidente de Junta, que leva muitas pessoas, o povo em geral, a considerar o exercício da função como um “tacho” muito apetecível, e até visto como um “elevador social” cuja posição abre portas a influências e facilidades várias, estereotipadas pela informação e / ou desinformação, social, política, cultural, etc.
Ser Presidente de Junta de Freguesia não é fácil, não raras vezes, a função de um Presidente de Junta de Freguesia “esbarra” com impedimentos legais, porque “agrilhoado” a regras legais, das quais se não pode libertar, sob pena de perder o seu mandato, e ainda ter de abrir os “cordões á bolsa” do seu orçamento familiar, a título de responsabilidades financeiras indemnizatórias e / ou de reposição de verbas, ou ambas, quando não, mesmo, ter de experienciar um cárcere, se matéria penal houver á mistura.
O que faz um Presidente de Junta? Numa das minhas formações para a ANAFRE, deparei com a mais singela e direta resposta a esta pergunta, vinda de um Presidente de Junta, do Norte, membro dos órgãos sociais da ANAFRE: um Presidente de Junta toma decisões. É isso mesmo.
Tomar decisões é uma enorme responsabilidade, no momento em que um Presidente de Junta pega na caneta para apor a sua assinatura num documento oficial da sua autarquia, esta “pesa” muito. É o peso da consequência dessa assinatura, pois se a decisão for contra as regras legais, a que está inexoravelmente vinculado, então irá sentir o peso de uma tonelada.
Ilustremos esta apologia, com um caso muito objetivo – a emissão de atestados.
Existe, no nosso País, e já o pude comprovar um pouco por todo o território, a percepção popular, e não só, de muitos eleitos também, que uma Junta de Freguesia, sendo o patamar do Estado mais próximo do cidadão, logo se apresentar como o “pleno” do princípio da subsidiariedade, entre o cidadão e a administração pública, tudo pode fazer, em sede de responder a todo o tipo de requerimentos do cidadão.
Nessa senda é vulgar (diria mesmo vulgaríssimo), que os serviços da administração central, e não só, orientem os cidadãos a requererem, junto das respectivas Juntas de Freguesia, este ou aquele atestado, seja um estabelecimento de ensino ou formação, pública, ou privada, a direccionar um encarregado de educação, requerente de um apoio de transportes, para se dirigir á sua junta de freguesia para requerer um atestado comprovando a inexistência de transportes na freguesia, ou que a residência do requerente se situa a x quilómetros da escola, ou da segurança social, ou até mesmo os serviços sociais de um município, instruindo o cidadão que pretende aceder a certos apoios sociais, a deslocar-se á sua junta para obter um atestado de insuficiência económica, ou ainda, um serviço pedir ao cidadão que requeira na junta um atestado comprovando que uma sua propriedade confina com outras, ou que ali se encontra implantada a x anos, ou a AIMA que para regularizar cidadãos estrangeiros, ilegais, lhes exige um atestado de residência na junta de freguesia, qual? Uma qualquer. Até já me chegou noticia, cujo apuramento está em curso, que há um gestor operacional do PRR a exigir atestados, sobre matérias estranhas ás competências das freguesias, aos beneficiários de verbas para puderem ser contemplados. etc, enfim os exemplos são inúmeros, o que é assustador.
Desta forma os vários serviços da administração central, mas também da administração municipal, a que não escapam as entidades privadas também, contribuem, decisivamente, para a formação da convicção, nos cidadãos, da “obrigação” de uma Junta de Freguesia, e por maioria de razão o respectivo Presidente da junta, emitirem todo o tipo de atestados requeridos pelo cidadão. É esmagadora essa pressão.
Para o Presidente da Junta, para quem os atestados são mesmo a “fava” da função, abre-se-lhe dois caminhos:
- ou assume a inglória tarefa de explicar ao requerente, que está legalmente impedido de emitir o atestado em causa, por não se enquadrar a matéria especificamente em causa e objecto de requerimento, nas competências atribuídas pela lei … isto é algo analogamente semelhante a “soprar contra o vento”;
- ou vai ao encontro do requerido pelo seu freguês, e lá emite o atestado que ele quer;
As consequências, no primeiro caso são uma “sentença terminal” de “não levas mais o meu voto”, a que se soma o peso de “nem o meu nem o da minha família”, lançando o pobre do Presidente de Junta, numa angústia existencial, porque é pelo voto que ganha ou perde, e pior ainda, é “castigado” por cumprir a lei, quando devia ser o contrário.
No segundo caso, o Presidente da Junta, ao emitir um atestado ilegal, entrega-se de corpo e alma, ao pantanoso terreno movediço da violação das leis, cujo corolário são, por natureza, uma mancha na honra do seu nome, quando não da família também, e pior … será completamente abandonado por aqueles que beneficiaram da ilegalidade, nem um maço de tabaco lhe vão levar ao degredo.
Não é fácil ser Presidente da Junta de Freguesia. Não é.
Qual é então o busílis da questão?
Todos compreenderão que a administração da “coisa” pública carece de regras que estabeleçam os limites (leia-se – atribuições e competências) dentro dos quais se conterá a dinâmica dessa administração.
Chama-se a isto os limites da “discricionariedade”, por oposição á “arbitrariedade” da actuação dos agentes públicos, a primeira própria de regimes democráticos, a segunda apanágio dos regimes não democráticos, ou ditatoriais se quiserem.
Sendo as autarquias locais uma administração pública especial, do Estado, porque descentralizada, e não só, com a mesma legitimidade de outros órgãos de soberania, e isso não é de somenos, ao contrário da administração central que é desconcentrada, os municípios e as freguesias assumem um papel de relevo, cujo escrutínio é mais rigoroso, porque também mais próximo do cidadão (munícipe e freguês).
Percebe-se, com cristalina facilidade, que a freguesia é, no seio do Poder Local, digamos, como que, o “balcão” mais próximo do cidadão, dito em vernáculo “é a porta mais á mão”.
Impõe-se, sempre, atender ás limitações a que estão sujeitas as freguesias, em matéria de ATESTADOS, pois que só estão legalmente autorizadas a emitir, sob requerimento, atestados de um reduzido número de matérias.
Fazendo uma leve incursão no historial dos regimes jurídicos das autarquias locais, no que á competência em matéria de atestados as juntas de freguesia têm, ficamos com uma ideia da evolução desde o pós aprovação da primeira constituição democrática, em Portugal, nos idos de 1976, escassos dois anos após a revolução de 1974, com a publicação do Decreto-Lei nº 79/77, de 25 de outubro, a que se seguiram os seguintes, a saber; o Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de março; a Lei nº 169/99, de 18 de setembro (omitindo a Lei nº 159/99, porque direcionada para as atribuições das autarquias, ao passo que o 169/99 atendia ás competências dos órgãos); a Lei nº 5-A/2002 de 11 de janeiro; e por último a actual Lei nº 75/2013 de 12 de setembro. Vejamos, então.
O Decreto-Lei nº 79/77, de 25 de outubro:
Este foi o primeiro regime jurídico das autarquias locais, cujo artigo 33º atribuía como competência, entre outras, atestar a residência, vida e situação económica dos cidadãos da freguesia (sic), (alínea f)), e lavrar termos de identidade, idoneidade e justificação administrativa e passar atestados de comportamento moral e civil (sic), (alínea p)).
Importa precisar que a referência a “cidadãos da freguesia” se refere a cidadãos recenseados, razão porque é obrigatório o recenseamento, parecendo não deixar margem a considerar outros residentes.
Como se vê, mesmo no início dos regimes jurídicos das autarquias locais já então não era permitido ás freguesias atestar qualquer coisa que lhe fosse requerida pelos cidadãos, ainda assim as situações abrangidas pelos atestados era algo alargada.
O Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de março:
Este é o segundo regime jurídico das autarquias locais, o qual fixa como competência, das freguesias, no artigo 27º, nº 1, entre outras atestar a residência, vida e situação económica dos cidadãos da freguesia (sic), (alínea f)), e lavrar termos de identidade, idoneidade e justificação administrativa alínea q) (sic). E aqui regista-se a primeira evolução pois cai a competência para emitir atestados de comportamento moral e civil.
O Decreto-Lei nº 135/99, de 22 de abril, que estabelece regras de Modernização Administrativa:
Ainda na vigência do segundo regime das atribuições das autarquias locais, o legislador, enxertou, através deste diploma, uma alteração àquele regime, fixando, no seu artigo 34º (atestados emitidos pelas juntas de freguesias), no seu nº 1, que atestados podem ser emitidos pelas juntas de freguesia, como sendo os de residência, vida, situação económica, dos cidadãos, e note-se no preciosismo de ter eliminado “da freguesia”, alargando, assim o âmbito pessoal dos requerentes, em beneficio do vínculo territorial, pois é preciso não esquecer que as freguesias são pessoas colectivas territoriais, e ainda termos de identidade e justificação administrativa.
Relativamente ao DL 100/84, mantém-se o tipo de atestados cuja competência cabe ás freguesias, densificando as diligências a ter para o efeito, mas no cerne da questão mantém-se tudo.
A Lei nº 169/99, de 18 de setembro versus a Lei 159/99:
Este é o terceiro regime jurídico das autarquias locais, com uma diferença substancial, enquanto a Lei 169/99 estabelece as competências (poderes funcionais) dos órgãos autárquicos, a Lei 159/99 estabelecia as atribuições (fins) das autarquias. Aqui interessa-nos então a Lei 169/99.
No seu artigo 34º, entre outras, fixa a competência, para as freguesias, de lavrar termos de identidade e justificação administrativa, e introduz uma alteração substancial na sua alínea p) “passar atestados nos termos da lei”, ora esta é uma referência directa, em matéria de atestados, ao diploma anteriormente abordado nestas linhas – DL 135/99 – o tal da modernização administrativa, mas não só, abre as portas á fixação de outros atestados em sede de outros diplomas avulsos, como viria a acontecer em 2001, com a Lei nº 7 de 11 de maio, regulando as uniões de facto, acrescendo aos anteriores atestados já previstos no DL 135/99, que veremos mais adiante.
A Lei nº 5-A/2002, de 11 de janeiro:
Este é o quarto regime das autarquias locais, que apenas derrogando o DL 169/99, visto introduzir pequenas alterações no regime, sem o revogar, não mexe na matéria dos atestados. Mantém-se assim, em matéria de atestados, o que se fixa no regime jurídico das autarquias locais com as alterações do diploma da modernização administrativa, mais o das uniões de facto.
A Lei nº 75/2013, de 12 de setembro:
Chegamos finalmente ao quinto regime jurídico das autarquias locais, onde se nota uma afinação, um limar de arestas, tendo em vista aperfeiçoar a sistémica jurídica, entre diplomas, ficando o regime jurídico das autarquias locais como o diploma genérico, ou base, e os restantes diplomas (onde se inclui o da modernização administrativa, e o das uniões de facto) como diplomas especiais, porque se em matéria de termos de identidade e justificação administrativa, tudo fica na mesma, atendendo ao seu artigo 16º alínea qq), já a alínea rr) limita-se a estabelecer a competência, genérica e abstrata, para “passar de atestados”, caindo a frase “nos termos da lei”.
Claro que esta frase final não faz falta nenhuma pois é uma redundância, tendo em vista o “principio da legalidade” plasmado no artigo 3º, nº 1, Código do Procedimento Administrativo.
Mas para os mais desprevenidos, ou não tão familiarizados com estas peculiaridades jurídicas, eliminar “nos termos da lei” e deixar apenas o “passar atestados” passa a ideia de que as freguesias podem passar qualquer tipo de atestado. E, obviamente, não é assim.
Mas um eleito não tem que dominar estas temáticas, já um licenciado em direito, um jurista, um advogado, um magistrado do ministério público ou magistrado judicial a estes é imperdoável o não domínio destas tecnicidades.
Assessoriamente acrescentemos, também, encarregados de protecção de dados de uma autarquia, assessores ou consultores autárquicos, e enfim com alguma flexibilidade, técnicos superiores dos quadros de uma autarquia.
Lei nº 7/2001. de 11 de maio (Uniões de facto)
Para além do plasmado em sede de regime jurídico das autarquias locais e em sede de modernização administrativa, temos agora o diploma que vem estabelecer as regras por que se regem as Uniões de Facto, e de acordo com o artigo 2-A, nº 1, surgem mais três tipos de atestados a emitir pelas juntas de freguesia, a saber, o de existência de união de facto, o de dissolução da união de facto por vontade e o da dissolução da união de facto por falecimento de um dos elementos.
Em jeito de conclusão, e tendo sempre presente o “Princípio da legalidade” do Código do Procedimento Administrativo, o Presidente de Junta, as freguesias, estão vinculadas somente á emissão de apenas 8 atestados, dos quais 5 ao abrigo do DL 135/99:
– residência:
– vida;
– situação económica;
– termos de identidade
– e justificação administrativa,
a que se somam mais 3 das uniões de facto
– existência de união de facto;
– dissolução da união de facto por vontade;
– dissolução da união de facto por falecimento de um dos elementos.
Atestar qualquer outra situação material distinta destas é ilegal, a lei só pode ser alterada pelos órgãos legislativos do País, e os órgãos representativos que venham a fazê-lo colocam-se em condições de serem notificados pelo ministério público para perda de mandato, a decidir pelo tribunal administrativo da respectiva circunscrição judicial.
Dura lex, sed lex, (a lei é dura, mas é a lei), goste-se ou não, é para cumprir, de resto seria uma enorme injustiça para todos quantos cumprem, como é seu dever, a lei, e ver o colega do lado a incumpri-la, sem consequências negativas.
Em Portugal é corrente verificar esta injustiça. Causa muito transtorno saber que num dado município uma freguesia que por acaso é acompanhada por um serviço externo, por exemplo em matéria de protecção de dados, acolhendo as corretas orientações do seu prestador, mas os seus colegas, com acento na mesma Assembleia Municipal, onde conversam e trocam ideias, perceberem que eles não cumprem a lei e que isso não lhes tira o sono, porque não há consequências. A opção é, em última instância, de cada um, e as consequências, igualmente personalizadas.
Oliveira Dias, Politólogo
Ver a II Parte deste Tema: https://noticiaslx.pt/2025/03/02/dossier-poder-local-atestados-ii/
Ver a III Parte deste Tema: https://noticiaslx.pt/2025/03/09/dossier-poder-local-atestados-iii/