Afastamento dos eleitores da esquerda
O problema não é o wokismo em si
Nos últimos anos, tornou-se comum associar o declínio eleitoral da esquerda tradicional a uma alegada “captura” por agendas identitárias ou culturais frequentemente agrupadas sob o termo wokismo. Mas essa análise, embora compreensível em tempos de simplificação política, carece de maior profundidade.
O problema não reside na existência de uma cultura política atenta à inclusão, à diversidade e à justiça social, mas sim na forma como esses princípios são, por vezes, utilizados ou comunicados descontextualizados, abstratos ou desligados das preocupações quotidianas da maioria da população.
Confundir excessos performativos com o núcleo dos valores progressistas é um erro de diagnóstico. Mais relevante do que rejeitar a agenda inclusiva é compreender como e por que razão ela se tornou, em certos contextos, símbolo de afastamento entre eleitores e partidos de esquerda.
O que é e o que não é a cultura woke
Originalmente, o termo woke surgiu como um apelo à vigilância contra injustiças, em especial no contexto do racismo estrutural. Evoluiu, mais tarde, para abranger um espectro mais vasto de causas ligadas à igualdade de género, orientação sexual, linguagem inclusiva e visibilidade de grupos historicamente marginalizados.
Essas lutas trouxeram avanços inegáveis e continuam a ser fundamentais num projeto democrático contemporâneo. No entanto, há momentos em que determinadas formas de ativismo adotam um tom moralista, dogmático ou excludente, que dificulta o diálogo com setores da sociedade que não partilham o mesmo vocabulário político, ou que se sentem pressionados a aderir a normas culturais que não compreendem ou que consideram artificiais.
O risco, aqui, não é o de uma esquerda “demasiado progressista”, mas sim o de uma esquerda que se afasta da escuta, da empatia e da clareza comunicacional, substituindo a pedagogia pelo julgamento ou pela imposição simbólica.
Corrupção: o verdadeiro fator de erosão
Se a polarização cultural explica parte da desafeição eleitoral, há outro fator mais silencioso, mas estrutural que parece ter contribuído ainda mais para o desgaste da esquerda institucional: a perceção persistente de corrupção ou de falta de integridade ética.
Ao longo das últimas décadas, a erosão da confiança nas instituições tem sido acompanhada por sucessivos episódios de suspeição ou escândalo político, muitos dos quais associados a figuras ou governos ligados à tradição social-democrata. A consequência mais visível tem sido a degradação da autoridade moral da esquerda, sobretudo quando esta se apresenta como portadora de um ideal de justiça social.
A combinação entre retórica igualitária e práticas políticas pouco transparentes alimenta o cinismo e a desconfiança, abrindo espaço ao discurso populista e à ideia, perigosamente eficaz, de que “são todos iguais”. Não é a ideologia que falha aqui, mas a coerência entre discurso e conduta.
Recentrar, sem recuar
As forças progressistas vivem um momento de encruzilhada: entre o risco de se perderem em disputas simbólicas que não mobilizam maiorias e o perigo de cederem à pressão do populismo, desfigurando os seus próprios valores fundadores.
Talvez o desafio maior seja recentrar o discurso político sem recuar no conteúdo: manter a ambição transformadora, mas torná-la mais legível, mais escutável, mais próxima. Ao mesmo tempo, torna-se essencial romper de forma clara com práticas associadas à corrupção e à degradação da ética pública, que continuam a ser, em muitos contextos, o verdadeiro fator de erosão da confiança popular.
Porque entre o purismo moral e o cinismo utilitário, o eleitor procura cada vez mais autenticidade, clareza e integridade. E não perdoa quando quem se diz defensor do bem comum falha nesses princípios.
– Lurdes Gonçalves
Gestora de Empresas | Especialista em Economia Social
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