Luanda ou a arte de governar – Presidente de Angola em Portugal
O Presidente da República de Angola veio a Portugal. Desembarcou com pompa, segurança apertada e discursos à altura dos mais nobres congressos europeus sobre Direitos Humanos. Disse-nos, com voz pausada e porte de estadista (daqueles com corte de electricidade programada), que a hospitalidade portuguesa é admirável. E nós, bons anfitriões, agradecemos. Discretos, como sempre, não comentámos que ele fala melhor da liberdade cá do que a garante lá.
Falou de integração, de dignidade, de democracia. Em Lisboa. Que é uma cidade linda — principalmente quando não está a cair por causa das obras. Disse-o de frente, com a cara de quem governa um país onde se pode viver plenamente, desde que não se tente protestar, denunciar ou candidatar-se contra o partido dominante.
“Democracia? Temos. Está ali ao fundo. Atrás daquele batalhão.”
A imprensa portuguesa escutou tudo com atenção reverente. Afinal, há petróleo, há parcerias, há empresários a almoçar no Ritz. Ninguém teve o descaramento de lembrar que Luanda continua a crescer sobre musseques onde crianças brincam com baldes furados e esperança racionada.
E que liberdade é aquela em que um protesto pode ser dissolvido por um capricho policial, onde jornalistas são perseguidos, onde o Parlamento aprova mais leis contra a oposição do que a favor da população?
Lei dos Estrangeiros? Só se for dos outros.
Entretanto, em Portugal, discute-se uma nova Lei dos Estrangeiros. O Presidente da República enviou-a para o Tribunal Constitucional. Porque é dura, dizem. Porque poderá ser discriminatória, avisam. Porque restringe o reagrupamento familiar, lamentam.
Ironia das ironias: o Presidente de Angola elogia a abertura portuguesa no mesmo dia em que a própria Angola mantém uma das leis migratórias mais apertadas do continente africano. Em Luanda, o estrangeiro é bem-vindo — desde que tenha conta bancária recheada, contrato aprovado, e paciência para enfrentar uma burocracia mais labiríntica do que a do Vaticano em dia de conclave.
Mas ninguém confrontou o ilustre visitante. Afinal, não se discute democracia com quem não traz bagagem para isso. E se há algo que Portugal domina, é o exercício diplomático da amnésia estratégica.
Os muros invisíveis da lusofonia
Não nos enganemos: o problema não é a visita. É o silêncio. É a complacência. É o retrato oficial que se faz de países onde a democracia existe mais nos discursos no estrangeiro do que nos bairros sem saneamento. E onde as leis migratórias não são contestadas, porque ninguém tem direito de contestar nada.
Já chegámos à Madeira? Não. Mas parece que há quem queira chegar a Luanda — desde que seja pela estrada da cortesia, com bandeirinhas nos carros e olhos bem fechados à realidade.
– António de Queirós assina esta crónica de sátira como quem escreve com pena, mas sem piedade. Até à próxima escala.
Luanda ou a arte de governar – Presidente de Angola em Portugal