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Luanda ou a arte de governar a partir do púlpito alheio (da série “Já Chegámos à Madeira?”)

Na mais recente crónica da série satírica “Já Chegámos à Madeira?”, António de Queirós comenta a visita do Presidente de Angola a Portugal — e o contraste entre os discursos democráticos cá e a realidade autoritária lá.

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Antonio de Queirós
Antonio de Queirós
Textos de humor, Satiricos, de critica bem disposta.
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Luanda ou a arte de governarPresidente de Angola em Portugal

O Presidente da República de Angola veio a Portugal. Desembarcou com pompa, segurança apertada e discursos à altura dos mais nobres congressos europeus sobre Direitos Humanos. Disse-nos, com voz pausada e porte de estadista (daqueles com corte de electricidade programada), que a hospitalidade portuguesa é admirável. E nós, bons anfitriões, agradecemos. Discretos, como sempre, não comentámos que ele fala melhor da liberdade cá do que a garante lá.

Falou de integração, de dignidade, de democracia. Em Lisboa. Que é uma cidade linda — principalmente quando não está a cair por causa das obras. Disse-o de frente, com a cara de quem governa um país onde se pode viver plenamente, desde que não se tente protestar, denunciar ou candidatar-se contra o partido dominante.

“Democracia? Temos. Está ali ao fundo. Atrás daquele batalhão.”

A imprensa portuguesa escutou tudo com atenção reverente. Afinal, há petróleo, há parcerias, há empresários a almoçar no Ritz. Ninguém teve o descaramento de lembrar que Luanda continua a crescer sobre musseques onde crianças brincam com baldes furados e esperança racionada.

E que liberdade é aquela em que um protesto pode ser dissolvido por um capricho policial, onde jornalistas são perseguidos, onde o Parlamento aprova mais leis contra a oposição do que a favor da população?

Lei dos Estrangeiros? Só se for dos outros.

Entretanto, em Portugal, discute-se uma nova Lei dos Estrangeiros. O Presidente da República enviou-a para o Tribunal Constitucional. Porque é dura, dizem. Porque poderá ser discriminatória, avisam. Porque restringe o reagrupamento familiar, lamentam.

Ironia das ironias: o Presidente de Angola elogia a abertura portuguesa no mesmo dia em que a própria Angola mantém uma das leis migratórias mais apertadas do continente africano. Em Luanda, o estrangeiro é bem-vindo — desde que tenha conta bancária recheada, contrato aprovado, e paciência para enfrentar uma burocracia mais labiríntica do que a do Vaticano em dia de conclave.

Mas ninguém confrontou o ilustre visitante. Afinal, não se discute democracia com quem não traz bagagem para isso. E se há algo que Portugal domina, é o exercício diplomático da amnésia estratégica.

Luanda ou a arte de governar
Luanda ou a arte de governarPresidente de Angola em Portugal

Os muros invisíveis da lusofonia

Não nos enganemos: o problema não é a visita. É o silêncio. É a complacência. É o retrato oficial que se faz de países onde a democracia existe mais nos discursos no estrangeiro do que nos bairros sem saneamento. E onde as leis migratórias não são contestadas, porque ninguém tem direito de contestar nada.

Já chegámos à Madeira? Não. Mas parece que há quem queira chegar a Luanda — desde que seja pela estrada da cortesia, com bandeirinhas nos carros e olhos bem fechados à realidade.


António de Queirós assina esta crónica de sátira como quem escreve com pena, mas sem piedade. Até à próxima escala.

Luanda ou a arte de governarPresidente de Angola em Portugal

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