Aplicar a lei? Vá de retro!
Crónica satírica:
Portugal, essa terra sublime onde combater a corrupção é sempre uma prioridade… desde que não se mexa uma palha. A última prova do zelo nacional pelo decoro público surge na recente portaria do Governo, que, com a gravidade própria de quem defende o interesse comum, esclarece que aplicar a lei agora seria “perturbador”.
Perturbador, sim. Como se fosse um terramoto ou uma praga de gafanhotos. Imaginem só o incómodo: obrigar funcionários públicos a declarar conflitos de interesses — em plena campanha autárquica! Uma verdadeira catástrofe administrativa, comparável a pedir a um taberneiro que lave os copos antes de servir o vinho.
E assim se conclui que a moral pública é uma questão de calendário: aplica-se a lei quando não atrapalha o boletim de voto. Fora disso, é um abuso, uma indecência, quase uma afronta à paz dos órgãos autárquicos — esses santuários onde, como todos sabemos, nunca houve tentações, promiscuidades, ou negócios de esquina entre primos e compadres.
Dir-se-ia que é necessário legislar para que um administrador municipal saiba que não deve assinar contratos com a empresa do cunhado. A sério? É esta a República em que vivemos: uma pátria tão virtuosa que só não é incorruptível por falta de decreto.
Eis, portanto, a conclusão inevitável: em Portugal, não é a corrupção que perturba a democracia — é a tentativa tímida de a evitar.
No meio das autárquicas, o Governo decide adiar a obrigatoriedade de declarar conflitos de interesses. Porque aplicar a lei… seria “perturbador”. Satírico comentário em “A República às Sextas“.