Crise de Suez e o novo jogo das potências (1956)
Introdução editorial
O Médio Oriente sempre foi mais do que um mapa recortado pela religião, petróleo e fronteiras coloniais. Foi — e continua a ser — um palco onde cada conflito local é ampliado por interesses globais. A Crise de Suez, em 1956, foi um desses momentos decisivos. Muito para além de uma guerra entre Israel e o Egipto, o episódio revelou novas alianças, expôs fragilidades coloniais e fez emergir um protagonista inesperado: os Estados Unidos.
Para Israel, foi a primeira grande operação militar ofensiva desde 1948. Para o Egipto de Gamal Abdel Nasser, foi um teste ao nacionalismo árabe. Para França e Reino Unido, uma tentativa desesperada de salvar resquícios do seu poder imperial. Para os EUA e a União Soviética, foi a oportunidade perfeita para redesenhar a sua influência no Médio Oriente. Esta crise não mudou apenas geografias — redefiniu equilíbrios de poder e abriu uma nova página no conflito israelo-palestiniano.
O cenário pós-1948: paz frágil e fronteiras armadas
Depois da guerra árabe-israelita de 1948, os acordos de armistício de 1949 não trouxeram paz, mas sim uma pausa armada. Israel reforçou as suas fronteiras e sobreviveu ao ataque combinado de cinco países árabes. Os palestinianos, expulsos ou fugidos, tornaram-se refugiados permanentes em Gaza, Cisjordânia, Líbano e Síria. As fronteiras transformaram-se em zonas de tensão diária, marcadas por infiltrações, contra-infiltrações e represálias militares, com destaque para as forças de fedayeen palestinianos, apoiadas por elementos dentro do Egipto.
Israel respondeu com ataques cirúrgicos — frequentemente letais — conduzidos por unidades especiais como a Unidade 101, liderada por Ariel Sharon. A fronteira entre Israel e a Faixa de Gaza, então sob controlo egípcio, tornou-se uma das mais explosivas do Médio Oriente.
Ao mesmo tempo, o Egipto vivia uma transformação histórica. A monarquia corrupta do rei Faruq tinha sido derrubada em 1952 pelo Movimento dos Oficiais Livres. Um dos seus líderes, Gamal Abdel Nasser, emergia como símbolo de uma nova era árabe: anti-colonial, nacionalista e ambicioso.
O surgimento de Nasser: nacionalismo árabe em ascensão
Nasser percebeu rapidamente que o Egipto poderia liderar politicamente o mundo árabe. O seu discurso era sedutor: independência face ao imperialismo ocidental, soberania económica e militarização defensiva para enfrentar Israel. Mas a sua estratégia tinha um custo: atrair inevitavelmente o confronto com o Reino Unido e a França, potências ainda influentes na região e profundamente desconfiadas da ascensão árabe.
Em 1955, o Egipto assinou um polémico acordo de armas com a Checoslováquia, então satélite da União Soviética. Era a primeira grande penetração militar soviética no Médio Oriente. Washington ficou alarmado. Telavive sentiu-se ameaçada pelo desequilíbrio militar crescente. O xadrez começava a mexer.
A faísca: nacionalização do Canal de Suez
Em Julho de 1956, Nasser fez um discurso que mudaria a história: anunciou a nacionalização do Canal de Suez.
“Recuperamos hoje aquilo que foi roubado ao Egipto. O Canal de Suez pertence ao Egipto!”, declarou Nasser perante milhares no Cairo.
O canal, aberto em 1869, era vital para o transporte de petróleo entre o Golfo Pérsico e a Europa. Estava até então sob controlo de uma companhia franco-britânica. Londres e Paris reagiram com raiva e pânico económico. Perder o canal era perder poder.
Tentaram forçar Nasser a recuar diplomaticamente. Ele recusou. Foi aqui que nasceram alianças improváveis.
A conspiração secreta: Israel, França e Reino Unido
Nos bastidores, formou-se uma aliança clandestina. Em Outubro de 1956, em Sèvres, nos arredores de Paris, altos representantes de França, Reino Unido e Israel reuniram-se secretamente. O objectivo: derrubar Nasser e recuperar o Canal de Suez.
O plano era simples:
- Israel atacaria o Egipto, invadindo o deserto do Sinai em direcção ao canal.
- França e Reino Unido interviriam “como mediadores”, exigindo que ambos os lados recuassem das margens do canal.
- Quando o Egipto rejeitasse essa exigência, seria invadido pelos europeus.
- Nasser seria humilhado, talvez deposto, e o controlo do canal restaurado.
Para Israel, a oportunidade era irresistível. Via no Egipto a maior ameaça à sua segurança. Além disso, pretendia acabar com as operações fedayeen e abrir novamente o Estreito de Tiran, fechado por Nasser, que bloqueava o porto israelita de Eilat. A ofensiva parecia apenas uma questão de tempo.
A guerra relâmpago no Sinai
Em 29 de Outubro de 1956, Israel lançou a Operação Kadesh. Brigadas israelitas avançaram rapidamente através do Sinai, contornando posições egípcias e conquistando pontos estratégicos num ataque fulminante e eficaz. A Força Aérea israelita destruiu boa parte das capacidades aéreas egípcias no solo, conquistando superioridade aérea em poucas horas.
O plano desenrolava-se como previsto:
- 31 de Outubro: França e Reino Unido intervieram oficialmente.
- 1 de Novembro: bombardeios franco-britânicos atingiram o Egipto.
- 5 de Novembro: forças aerotransportadas europeias desembarcaram perto do canal.
- Tudo parecia caminhar para a vitória da coligação.
Mas a guerra iria virar — não no campo de batalha, mas na diplomacia internacional.
O inesperado travão: EUA e URSS param a guerra
A ofensiva militar parecia decidida no terreno, mas o tabuleiro político global mudou abruptamente. Os Estados Unidos — que muitos esperavam que apoiassem os seus tradicionais aliados Reino Unido e França — fizeram o oposto. O presidente Dwight D. Eisenhower estava furioso com a operação secreta.
Washington temia três coisas:
- Que a intervenção ocidental empurrasse definitivamente o Egipto para o bloco soviético;
- Que o mundo árabe explodisse em revoltas anti-ocidentais;
- Que o controlo militar de Suez colocasse em risco o fornecimento global de petróleo.
Num movimento raro, os EUA alinharam-se contra os seus próprios aliados na ONU e exigiram um cessar-fogo imediato, ao mesmo tempo que ameaçavam Londres com sanções económicas e desvalorização da libra esterlina caso persistisse no ataque.
Ao mesmo tempo, a União Soviética, liderada por Nikita Khrushchev, ameaçou intervir diretamente e chegou a falar de lançar mísseis contra Londres e Paris se a guerra continuasse. Era provavelmente um bluff, mas funcionou: o risco de uma confrontação direta na Guerra Fria era real.
Sob pressão simultânea de Washington e Moscovo, Londres e Paris recuaram. Foi uma humilhação geopolítica e o fim definitivo da era imperial europeia no Médio Oriente.
Israel vence no terreno — e perde na diplomacia
Militarmente, Israel tinha cumprido os seus objetivos: destruiu bases fedayeen em Gaza e ocupou o deserto do Sinai numa operação relâmpago. Mas a vitória foi efémera. Em Março de 1957, sob forte pressão dos Estados Unidos e ameaça de sanções da ONU, Israel foi forçado a retirar-se do Sinai e da Faixa de Gaza.
Em troca, obteve duas garantias internacionais:
✔️ O regresso da liberdade de navegação pelo Estreito de Tiran;
✔️ A criação da primeira força de paz da ONU na história — a UNEF, estacionada no Sinai para prevenir novos conflitos.
Um detalhe: esta presença da ONU seria decisiva para o episódio seguinte da série — porque, em 1967, a sua retirada abriria caminho para a Guerra dos Seis Dias.
Nasser perde militarmente — e vence politicamente
Gamal Abdel Nasser saiu da guerra como herói da causa árabe. Apesar da derrota militar, construiu uma vitória política colossal: desafiou as potências coloniais, manteve a nacionalização do Canal de Suez e simbolizou a resistência árabe contra Israel e o Ocidente.
O seu prestígio cresceu em toda a região e com ele o pan-arabismo — a ideia de união política do mundo árabe contra a ingerência externa. A sua voz passou a ecoar em Damasco, Bagdade, Gaza e Ramallah.
Para os palestinianos, a crise foi amarga: continuaram sem Estado, bloqueados entre interesses árabes regionais e a política de segurança israelita.
Box de contexto
O que estava verdadeiramente em jogo em Suez?
Actor | Objectivo |
---|---|
Israel | Acabar com ataques fedayeen; abrir Estreito de Tiran; enfraquecer o Egipto |
Egipto | Afirmar independência; controlar Suez; liderar mundo árabe |
Reino Unido | Recuperar canal; preservar influência no Médio Oriente |
França | Punir Nasser pelo apoio à Frente de Libertação Nacional na Argélia |
EUA | Evitar expansão soviética; estabilizar petróleo |
URSS | Ganhar influência no mundo árabe; derrotar colonialismo europeu |
Consequências da Crise de Suez
A crise deixou marcas profundas:
✅ Fim do domínio colonial britânico e francês no Médio Oriente
✅ Ascensão dos EUA e URSS como árbitros regionais
✅ Reforço de Israel como potência militar regional
✅ Popularidade explosiva de Nasser e do nacionalismo árabe
✅ Radicalização do conflito israelo-palestiniano
✅ ONU assume papel militar no terreno pela primeira vez
Conclusão: Suez foi mais do que uma crise — foi uma mudança de mundo
A Crise de Suez de 1956 foi um divisor de águas. Israel provou a sua capacidade militar e consolidou alianças estratégicas com o Ocidente. O Egipto perdeu batalhas, mas ganhou o coração do mundo árabe. Os EUA destronaram os impérios europeus e assumiram definitivamente o controlo político do Médio Oriente. E a URSS entrou na região pela porta grande.
Para o conflito israelo-palestiniano, a guerra deixou duas certezas: a questão palestiniana continuava sem solução, e o confronto entre Israel e o mundo árabe estava longe de terminar.
Crise de Suez e o novo jogo das potências (1956)
Próximo episódio
Episódio 6 — “Entre guerras: da retirada do Sinai à guerra relâmpago de 1967”
Como a tensão se acumulou até explodir na Guerra dos Seis Dias e mudar para sempre as fronteiras do Médio Oriente.
Referências rápidas
- United Nations Archives – Resoluções sobre a Crise de Suez (1956–1957)
- Avi Shlaim – The Iron Wall: Israel and the Arab World
- Eugene Rogan – The Arabs: A History
- Dominique Moisi – Geopolitics of Emotion
- The Economist Historical Briefings – Suez Crisis
- Foreign Affairs – How the Suez Crisis Changed the Middle East
- BBC History Files – Suez 1956
Crise de Suez e o novo jogo das potências (1956)