Grilhetas douradas
O Senhor Justino, que nunca pôs os pés na Madeira (mas tem um sobrinho que foi lá instalar painéis solares e voltou com uma intoxicação de poncha e uma paixão por lagartos), ficou esta semana com o sobrolho franzido e a goela seca ao ouvir Sua Excelência Regional, o sempre exuberante Miguel Albuquerque, declarar aos sete ventos — e ao primeiro-ministro — que os madeirenses estão fartos das grilhetas do Continente.
Grilhetas! Sim, essas mesmas! Senhor Justino, que só conhecia grilhetas do tempo da escola agrícola e do cinto do pai, ficou em choque. “Livrar-se das grilhetas do Continente?”, pensou, “mas não foi o mesmo continente que mandou para a Madeira aeroportos, túneis, autoestradas, subsídios à banana, ao rum e à retórica — tudo pago com os tostões da gente de Trás-os-Montes, que nem têm estrada para fugir da emigração?”
Com um ar entre o revolucionário folclórico e o síndico dos Açores em ciúmes, Miguel Albuquerque avançou, espada em riste, para a revisão constitucional. “Liberdade!” gritou ele, com os bolsos ainda a tilintar de verbas do PRR e fundos europeus de coesão. “Autonomia!” clamou ele, sobre o palco do Chão da Lagoa, ladeado de militantes entusiasmados e espadões de carne em brasa.
Grilhetas Douradas
O Continente, por sua vez, ficou quedo — espremido entre IPs que não ligam a lado nenhum e centros de saúde que fecham ao sábado — a ouvir, com a humildade de quem já sabe que a Madeira é como aquele compadre esperto que pede dinheiro para um trator e aparece com um jet ski.
“Não é nenhum favor!”, proclamou Albuquerque, referindo-se às transferências da República. E Senhor Justino, sempre atento, anotou:
— Pois claro. Depois de tantos milhões mandados para lá, já nem se pode chamar favor. É contrato de namoro com cláusula vitalícia.
E não se pense que o líder madeirense se ficou por palavras. Vai criar um grupo de trabalho, desses que em Portugal servem para justificar almoços e PowerPoints. Um grupo para rever a Constituição, essa ingrata que teima em não permitir que a Madeira se torne numa Mónaco de poncha e cubas de cimento europeu.
Mas Senhor Justino, que já viu muita coisa desde que o padre da aldeia lia a Constituição em latim macarrónico, sabe como isto acaba: há discurso inflamado, há festa na herdade com bolo do caco e depois… há silêncio. Até à próxima tranche.

E entre grilhetas e palermices legais, o Senhor Justino brinda com vinho de Favaios (porque Madeira tem vinho, sim, mas nós temos memória) e remata:
“Se as grilhetas do Continente pesam, é só porque foram feitas de ouro. Fundido nas finanças públicas e forjado na paciência dos contribuintes de cá do monte.”
Até para a semana. Se o país aguentar mais um aparte.
— O Senhor Justino de Vale de Asnos
Grilhetas douradas
