Direito Potestativo
Órgãos Autárquicos e Direitos Potestativos
Surpreendeu-me, ou talvez não, a notícia de que representantes partidários na Câmara Municipal de Lisboa, vulgo Vereadores, a propósito da tragédia do ascensor da Glória, devido ao conhecimento de factos, até agora omitidos, teriam solicitado ao senhor Presidente da Câmara Municipal, uma reunião extraordinária para apurar a verdade dos factos, no sentido de se esclarecerem as informações vindas, agora a público. A surpresa, entenda-se, não foi propriamente a pretensão dos senhores vereadores, mas sim o instrumento utilizado, por um lado, e por outro a convocatória do senhor presidente da Câmara Municipal para, imagine-se, o dia seguinte às eleições de 12 de outubro de 2025.
Vejamos, primeiramente, o instrumento administrativo utilizado pelos senhores vereadores: as notícias, no caso veiculado pelo jornal correio da manhã, na sua edição de 23 de setembro de 2025, dão conta de um “pedido” para a realização de uma reunião extraordinária, ficando sem saber se ficou a dever-se a desconhecimento jornalístico da inexistência, nas autarquias locais, de “pedidos” como actos administrativos preparatórios, mas isso sim de “requerimentos”. Presume-se, assim, que se tratou de um requerimento subscrito, segundo a notícia por 3 vereadores do PS, 1 do Livre, 1 do BE e 3 do Cidadãos por Lisboa, num total de 8 vereadores, num universo de 17 membros, Presidente e vereadores (os 2 vereadores do PCP e os 7 da AD, incluso o Presidente Carlos Moedas, não acompanharam os requerentes nesta iniciativa). Veremos mais à frente, porque é importante esta informação.
Está muito arreigada a ideia de que um Presidente de um órgão representativo, e em especial com funções executivas, se assemelha a um Xerife do burgo, sendo remetidos para um plano secundário os restantes membros desses órgãos, muito contribuindo para essa perceção a circunstância de não terem (quer os senhores vereadores, na câmara municipal, quer os senhores vogais, na junta de freguesia) competências próprias, apenas têm as competências que neles sejam delegadas pelos respetivos Presidentes. Isto de alguma forma desqualifica-os, em benefício da tal “perceção” do Xerife do território.
Concorre, e muito, para esta generalizada percepção uma lei, contendo Regime Jurídico das Autarquias Locais, cuja obsolescência, especifica, é gritante, para além da bizarria de se incluir na mesma Lei (nº 75/2013, de 12 de setembro) vários regimes jurídicos, numa lógica de meter no mesmo saco alhos e bugalhos. Mas isto será objecto de ulterior artigo dedicado ao tema.
Uma das especificas obsolescências do Regime Jurídico das Autarquias Locais (RJAL), prende-se com as competências para a prática de actos administrativos similares, ou idênticos, dos diversos órgãos colegiais, ou seja, das Assembleias de Freguesia e Municipais, e das Câmaras Municipais, e Junta de Freguesia, no que concerne em concreto às convocatórias das sessões ou reuniões extraordinárias.
O bom senso, e a clareza administrativa recomendaria a fixação de procedimento comuns a todos estes órgãos … mas a opção do legislador ordinário foi em sentido oposto, preferindo introduzir diferentes peculiaridades, em cada um dos órgãos, conforme de seguida se explicará.
O RJAL fixa, para os diferentes órgãos colegiais representativos, diferentes formas de convocação de sessões ou reuniões de caracter extraordinário, assim no Artº 12º é regulada a forma como as sessões extraordinárias da Assembleia de Freguesia é concretizada, no Artº 22º regula-se o mesmo para as Juntas de Freguesia, no Artº 28º regula-se a mesma matéria para as Assembleias Municipais, e finalmente no Artº 41º é a vez das Câmaras Municipais. Portanto quatro artigos que se podiam conter num único apenas.
Uma diferença importante é a competência da iniciativa da convocatória, isto é, que titular, ou titulares, têm o poder de requerer reuniões extraordinárias.
O legislador ordinário, por motivos que escapam à racionalidade, entendeu dar a iniciativa de requerer reuniões extraordinárias a diferentes protagonistas:
Órgão a Reunir extraordinariamente | Presidente Do Órgão | Mesa do Órgão | O Poder Potestativo dos Membros do órgão | nº Cidadãos Recenseados No território | Outro órgão |
Assembleia de Freguesia | Não tem Competência | Sim, por deliberação da mesa | Sim, por subscrição de requerimento 1/3 dos membros | Sim, por subscrição colectiva de requerimento | Sim, Presidente de Junta em cumprimento deliberação desta |
Junta de Freguesia | Sim, é competente | Não tem Competência | 50% + 1 dos membros do órgão | Não tem Competência | Não tem Competência |
Assembleia Municipal | Sim, é competente | Sim, por deliberação desta | Sim, por subscrição de 1/3 dos membros do órgão | Sim, por subscrição colectiva de requerimento | Sim, Presidente de Câmara em cumprimento de deliberação desta |
Câmara Municipal | Sim, é competente | Não tem Competência | 1/3, dos membros do órgão | Não tem Competência | Não tem Competência |
Este quadro carece de um esclarecimento, porquanto não sendo habitual considerar que os órgãos executivos tenham uma mesa, tal como os órgãos deliberativos, a verdade é que por força do Código do Procedimento administrativo, todos os órgãos colegiais públicos são dotados de uma mesa constituída pelo respectivo Presidente do órgão, e por quem for escolhido para secretariar a sessão (o que se não deve confundir com secretariado prestado ao órgão), isto no caso da Câmara Municipal, porquanto nas juntas de freguesia a função de secretário está diretamente prevista no RJAL.
Ora da análise do quadro percebe-se no imediato que só o Presidente da Assembleia de Freguesia não tem competência para “de motu próprio” ter a iniciativa de convocar reuniões extras.
Percebe-se, também porque razão nos órgãos executivos a mesa não tenha a mesma competência que as congéneres dos deliberativos têm, é que nos órgãos executivos a mesa é constituída por apenas duas pessoas, o Presidente do órgão e o secretário, ora tendo o Presidente voto de qualidade, querendo opor-se a uma deliberação da mesa, o secretário, que é 50% da mesa, nunca conseguiria o seu intento, e assim nem vale a pena conferir esta competência a uma mesa onde o Presidente é efectivamente o poder total.
Mas o cerne deste artigo, que tem por base a noticia sobre a Câmara de Lisboa, mas que se aplicam a todos os demais em todo o País, são os direitos potestativos que assistem aos titulares dos órgãos autárquicos representativos, e no caso, interessa ver a coluna respeitante à Câmara Municipal, para perceber que os membros deste órgão (Presidente e vereadores) são titulares de um direito potestativo relativamente ao requerimento de reuniões extraordinárias. Ora um direito potestativo é um direito que se exerce, mesmo com a oposição de terceiros, é o caso.
Significa isto que no caso das câmaras municipais 1/3 dos membros do órgão, podem impor, contra a vontade dos restantes 2/3, a convocação de uma reunião extraordinária. É dos poucos casos em que uma minoria se pode impor a uma maioria.
No caso em apreço, os membros da Câmara Municipal de Lisboa são em número de 17 (Presidente mais 16 vereadores), esta minoria de 1/3, são apenas 6 membros (17 / 3 = 5,6, arredonda para 6). Ora os requerentes reuniram 8 assinaturas, bem para lá do mínimo exigível para impor, contra a vontade do Presidente da Câmara, a convocação da reunião extraordinária.
A questão que se coloca então é esta – pode o Presidente da Câmara perante o exercício de um direito potestativo, como este, subscrito por 8 vereadores convocar a reunião para o dia 13 de outubro, portanto daqui a 17 dias?
Não, não pode. O Presidente da Câmara está vinculado à obrigação de convocar, recebido que esteja o requerimento, a convocar a reunião extraordinária com um mínimo de dois dias de antecedência, para um dos dias até um máximo de oito dias, muito inferior aos 17 dias.
Neste caso, e perante o não acatamento da obrigação a que está vinculado o Presidente da Câmara, a própria lei confere aos 8 requerentes o poder de eles próprios realizarem essa convocação, e os serviços camarários estão obrigados a colaborarem com eles, com a logística habitual.
Assim é muito claro que o não acatamento do requerimento dos 8 vereadores por parte do Presidente da Câmara não é ilegal, porque a lei prevê e soluciona essa situação, mas o Presidente da Câmara Municipal, proceder a uma convocação para lá do prazo máximo, isso sim é uma ilegalidade.
Por tudo se os 8 vereadores verdadeiramente querem que se realize o que requereram então é só seguir o que estas linhas expõem, já que as respectivas assessorias o não fizeram, a julgar pelas notícias vindas a público, e estão à vontade para usar este artigo para fundamentarem as coisas desde que façam a referência do mesmo à luz dos direitos de autor, indicando o órgão de comunicação social e o autor do artigo.
Oliveira Dias, Politólogo
Post Scriptum, A redacção fez-me saber que havia entendimento distinto do artigo porquanto, segundo alegam, o Regimento da Câmara Municipal de Lisboa, vai mais além na densificação de conceitos, sobrepondo-se ao RJAL. Consultado o referido documento, que incorretamente se chama “Regimento”, na verdade assim é para as Assembleias, pois nos órgãos executivos, como é o caso, são “Regulamentos internos”, e analisado o mesmo, foram detetadas várias ilegalidades, mas no que diz respeito ao cerne da peça publicada, o seu Artº 3º está completamente em linha com a peça de opinião publicada. Por último um Regulamento Interno ou Externo ou Regimento JAMAIS se sobreporá ao RJAL.